O isolamento social nas periferias antecede a Covid-19. A falta de políticas públicas e a de acessibilidade mantiveram as pessoas com deficiência às margens. Foi com essa premissa, e através do diálogo com diversas pessoas que moram nas regiões periféricas da cidade de São Paulo, que decidi retratar essa realidade através de um projeto de fotografia e entrevistas semanais.
Com a repercussão do mini-documentário que fiz sobre a primeira cadeirante negra a atuar no Theatro Municipal de São Paulo, Mona Rikumbi, comecei a me aproximar à luta das pessoas com deficiência. Em 2019, decidi montar a ONG Assim Somos, agência que representa, capacita e cria conteúdo com artistas com alguma deficiência.
A pessoa com deficiência é frequentemente estereotipada pela mídia e, nesse processo, a sua individualidade é condenada e reprimida. É importante fazermos um esforço coletivo para resgatar essas vozes e dar protagonismo à pessoa, não à deficiência. Foi isso que aprendi – e continuo aprendendo – com as pessoas que tive a sorte de conhecer durante a construção desse projeto.
A seguir, os registros de Mona Rikumbi, Suely Rezende, Renata Viana da Silva, Frydda Emanuelly, Cleberson Casa Grande Ferraz, Nilda Martins, Fabiana dos Santos e Ana Maria Norberto.
Suely Rezende
"Este cenário de isolamento social devido à pandemia só reforça que as pessoas com deficiência já viviam isoladas – pelas desigualdades, por ausência de políticas públicas específicas na área da saúde e da educação, e nos diversos tipos de acessibilidade: arquitetônica, atitudinal, programática, metodológica, instrumental e nas comunicações. O peso da invisibilidade e a negação de direitos às pessoas com deficiência persistem, com ou sem pandemia. Temos que ir à luta pela equidade de direitos. Pelo nosso bem viver, as pessoas com deficiência devem reivindicar que o sistema avance em políticas públicas específicas que nos contemple em todos segmentos. Temos que lutar pela equidade de direitos para a pessoa com deficiência."
Renata Viana da Silva
"Eu estou acostumada a ficar em casa por conta da minha deficiência e da falta de acessibilidade. O que mais me afetou, durante a pandemia, foi a sensação de impotência de não poder ajudar os outros. Sinto falta dos abraços, da conexão física. O silêncio do isolamento agitou o coração, as incertezas, trouxe muitas angústias, mas a vontade de viver renasceu todos os dias. Em meio aos medos e fragilidades, aprendemos duramente a valorizar as coisas simples, amar e viver intensamente... Sem deixar nada para amanhã!"
Mona Rikumbi
"Após alguns meses de isolamento social, vivemos num espaço que recebe o nome de 'novo normal'. De que normal as pessoas estão falando? Esse vírus escancarou as diferenças sociais, raciais, de gênero, etarismo e tantas outras discriminações correlatas. A cada dia os vulneráveis estão mais vulneráveis. Os destituídos estão onde sempre estiveram: em constante distanciamento social. Sem acesso. Acessibilidade saiu do espaço de lutas das pessoas com deficiência. Não são apenas mudanças arquitetônicas, intérpretes de libras. Acesso é vida digna, é saúde, é habilitação, é respeito à diversidade. Diversidade é quando temos tudo, para todas as pessoas."
Frydda Emanuelly
"Primeiro veio o desespero, e depois veio o desafio de saber colocar uma máscara. Imagina eu, com paralisia cerebral, cheia de movimentos involuntários, é uma comédia! Mas hoje tudo parece algo habitual. Além da máscara, uso luvas quando ando de ônibus. Uma coisa que esse isolamento me fez perceber é o quanto nós, seres humanos, somos inocentes, ou fingimos, que não somos capazes de admitir e reconhecer que o mal que vivemos foi provocado por nós mesmos! Eu continuo com a certeza de que o ser humano precisa urgentemente aprender a ser humano verdadeiramente. Quando percebermos o quanto isso é importante também veremos que a maioria dos problemas do mundo terão solução!"
Cleberson Casa Grande Ferraz
"Tenho paralisia cerebral, uma deficiência de nascença que comprometeu os meus membros superiores e inferiores, mas não houve comprometimento cognitivo. Eu não consegui ser alfabetizado porque não haviam profissionais especializados e preparados para me ajudar quando criança. Sou ciclista, amo pedalar, faço parte de um grupo de ciclistas e também aula de teatro e de dança. A minha mãe nunca me prendeu. Ela me deu a liberdade para seguir o meu rumo, e também não me infantiliza – o que é bem comum de acontecer, por parte da família ou cuidadores, com pessoas com deficiência. Nessa quarentena, aprendi a ser mais caseiro e também a ser mais compreensivo."
Nilda Martins
"Para nós, cadeirantes, essa pandemia é a mesma de alguns tempos atrás. A "pandemia de antigamente", aquela que sempre existiu, foi e continua sendo difícil porque já éramos pretas e cadeirantes e tínhamos que ser muito fortes para conseguirmos alguma coisa. Eu fui forte e consegui me tornar uma atleta paralímpica, tenho várias medalhas de ouro, porém tive que lutar contra muito preconceito para conquistar isso. O coronavírus me fez refletir um pouco sobre o que eu passei lá atrás, porque pra gente, que é cadeirante e preta, as coisas se tornam mais difíceis com a pandemia de hoje."
Ana Maria Norberto
"Eu caí de uma laje em 2010, fraturei a cervical C7 e fiquei tetraplégica aos 40 anos. Logo após entrar no centro de reabilitação Lucy Montoro, percebi que eu poderia fazer muito mais que imaginava. Aos poucos fui descobrindo que poderia sair pra dançar, ir ao teatro... Mas como que eu iria sair em uma cadeira de rodas sendo que onde moro é longe de tudo? As calçadas e ruas são impossíveis de andar, e pegar o ônibus e metrô não seria fácil. Em fevereiro de 2020 comecei a praticar halterofilismo, um esporte de alto rendimento, e percebi que eu poderia participar de competições e me ajudaria a ganhar força para me locomover muito mais. Nessa pandemia tive que pensar como iria fazer para não entrar em depressão e ficar sem me movimentar. A pandemia para nós, pessoas com deficiência, que já vivíamos em isolamento, dificultou ainda mais as nossas vidas."
Fabiana dos Santos
"Tenho deficiência visual adquirida há 6 anos. Perdi a minha visão total em ambos os olhos devido ao diabetes. Como deficiente visual, acho que o isolamento já acontece há muito tempo. Antigamente creio que era muito pior – as famílias que tinham pessoas com alguma deficiência as escondia e as deixava presas e excluídas do mundo. Mas ainda hoje temos muita dificuldade para chegar em um lugar e ter alguém disponível para ajudar a encontrar um produto, fazer a descrição dele. Algumas vezes o funcionário olha e finge que nem está te vendo. As pessoas têm que entender que apenas temos uma dificuldade e não precisamos ser tratados como coitados, incapazes. As leis e as políticas não estão do nosso lado, precisamos de um braço direito para implantar melhorias físicas para nós, deficientes, termos maior autonomia e intensificar as leis para nos beneficiar. Felizmente podemos contar com associações como a da Fernanda Bianchini, entre outras, que visam nosso bem-estar e a inclusão social. Triste é saber que são poucas associações como essa e milhões de pessoas com deficiência no mundo inteiro."
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