03/07/2020

Singularidades. Dicionário da deficiência: como termos que antes designavam transtornos e condições se tornaram pejorativos?

Existe uma espécie de ‘dicionário’ que determina quais as nomenclaturas corretas para casos de transtornos mentais e outras deficiências. No entanto, com o passar do tempo, alguns termos antes relacionados por médicos a condições como a síndrome de Down, atraso no desenvolvimento e outras, tiveram que ser revistos por um motivo: eles passaram a ser popularmente usados de forma pejorativa, para insultar e ofender outras pessoas.

No século XX, por exemplo, termos como ‘defeituoso’, ‘esquizoide’, ‘débil mental’, ‘mongoloide’ e muitos outros faziam parte dos diagnósticos médicos. Hoje, essas nomenclaturas foram substituídas por outras e seu uso de forma pejorativa passou a ser mais punido e desaprovado.

Exemplo disso ocorreu com os streamers brasileiros YoDa e Rakin, que foram suspensos da plataforma Twitch em abril deste ano após usar a palavra ‘mongoloide’ enquanto jogavam online. Como forma de punição e aviso, ambos foram proibidos de usar a plataforma por sete dias. Na coluna Por Dentro do Autismo desta semana, vamos falar um pouco sobre esse tema.

Dicionário de termos médicos do século XX

De fato, a maioria de termos hoje considerados pejorativos foram usados por médicos no passado para designar deficiências e condições. No livro Outra Sintonia: a história do autismo, os autores reforçam isso ao lembrar que Donald Tripplet, conhecido como a primeira criança a receber um diagnóstico de autismo, seria classificado como ‘defeituoso’ pelos médicos em 1937.

De acordo com a obra, a palavra ‘defeituoso’ era usada para crianças com Síndrome de Down, epilepsia, traumatismo cranioencefálico ou por motivos médicos que não sabiam explicar. Na época, era comum também que a orientação médica para casos como esse fosse de que os pais deveriam internar os filhos em instituições.

“Sem dúvida, a recomendação de institucionalizar não tinha o intento de ser cruel, assim como a palavra ‘defeituoso’ não pretendia ser depreciativa. Na época, era apenas um termo médico que denotava discrepância do funcionamento normal, igualmente aplicada a uma válvula cardíaca defeituosa”

Outra Sintonia; Página 28.

Existem ainda outros termos, hoje pejorativos, que anteriormente diziam respeito à condições médicas:

Idiota – pessoas com idade mental de três anos;
Imbecil – pessoas com idade mental de três a sete anos;
Retardado – pessoas com idade mental de sete a dez anos.

Além disso, na primeira metade do século XX, o dicionário da deficiência incluía termos como ‘cretino’, ‘maníaco’, ‘lunático’, ‘mentecapto’, ‘debiloide’, ‘bobo’, ‘demente’, ‘alienado’, ‘débil mental’, ‘psicótico’ e outros. Presentes em artigos acadêmicos da época, as palavras pretendiam apenas descrever clinicamente pacientes.

‘Mongoloide’ era também um vocábulo utilizado para designar crianças com Síndrome de Down, mais tarde considerado um insulto duplo.

imagem: reprodução/ Google.

Do ‘dicionário da deficiência’ ao sentido pejorativo

Usadas fora de contexto, essas palavras não demoraram a designar ofensas e xingamentos. Assim, dar um diagnóstico médico de débil mental, por exemplo, passou a ser considerado errado. O uso pejorativo dos termos fez com que seus significados mudassem.

Assim, a organização americana de deficiência intelectual precisou passar por cinco mudanças de nome:

– 1876: Associação de Agentes Médicos de Instituições Americanas para Pessoas Idiotas ou Débeis Mentais;
– 1903: Associação Americana para Estudos dos Débeis Mentais;
– 1933: Associação Americana para Deficiência Mental;
– 1987: Associação Americana para Retardamento Mental;
– 2006: Associação Americana para Deficiências Intelectuais e de Desenvolvimento.

‘Autismo não é adjetivo’

Preocupados que o mesmo efeito aconteça com a palavra ‘autismo’, um grupo formado por pais criou o movimento ‘Autismo Não é Adjetivo’. Por meio dele, as famílias se unem para expor e denunciar o uso do termo por pessoas, especialmente figuras públicas, como forma de ofensa.

A ideia é que, além de pedir desculpas de maneira pública, essas pessoas também possam usar a visibilidade que têm como forma de conscientizar o público sobre o uso de autismo de maneira pejorativa. Com a campanha, políticos como a presidente do Supremo Tribunal Federal, Carmem Lúcia, e o atual prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, foram alertados após usar a palavra de forma pejorativa e pediram desculpas publicamente.

Um dos casos mais recentes envolve os humoristas Dihh Lopes e Abner Henrique, que em abril deste ano tiveram cenas de um show no qual zombavam de uma banda formada somente por jovens no espectro do autismo foram divulgadas na internet. Com a repercussão, o vídeo foi denunciado ao Ministério Público, que abriu inquérito para investigar “eventual conduta discriminatória a pessoas com deficiência”.

Para Tiago Abreu, autista, jornalista e criador do podcast Introvertendo, o uso do termo ‘autismo’ de forma pejorativa causa dor e sofrimento àqueles que estão no espectro.

“Antes, eu me sentia bastante ofendido. Hoje em dia, eu percebo que em geral a pessoa nem sabe o que é autismo. Eu tendo a ter tolerância quando isso vem de alguma pessoa na internet que não refletiu e usa isso como meme. Mas a gente sabe que políticos, articulistas, e pessoas do mundo intelectual ainda utilizam autismo e outros transtornos como sinônimo de inércia, má vontade ou hermetismo. Nestes casos, acho fundamental combater com campanhas de conscientização.”, afirma.

Fonte  https://olharesdoautismo.com.br/2020/07/02/dicionario-da-deficiencia/

Postado por Antônio Brito 

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