No interior do estado do Amazonas, onde as escolas se apoiam mais na coragem dos professores do que nas condições materiais e de suporte oferecidas pelo poder público, a inclusão é, muitas vezes, impulsionada pela necessidade de atender quem chega. Foi nesse contexto que, em 2019, atuando no município de Tefé, a mais de 500 quilômetros de Manaus, a professora de educação física Raquel Canté recebeu seus primeiros alunos com deficiência em uma instituição de ensino que não contava com referências de inclusão no esporte escolar.
Sem materiais adequados e suporte especializado, ela se viu diante de um desafio novo e urgente que transformaria sua prática docente. Durante a preparação das aulas, a professora se perguntou: “como ensinar esporte a alunos com deficiência?”. Em uma busca simples na internet, ela conheceu o Programa Educação Paralímpica, iniciativa que oferece cursos, materiais e formação voltada ao esporte adaptado e que se tornaria o ponto de virada em sua trajetória.
Idealizado pelo Comitê Paralímpico Brasileiro, o programa foi lançado em 2017 para apoiar profissionais de todo o país na construção de ambientes mais acessíveis ao ensino do esporte. Ao longo desse período, o projeto formou uma rede que já alcança cerca de 2.400 municípios, levando referências, métodos de adaptação e conhecimentos que antes não chegavam às salas de aula da maioria das escolas brasileiras. Todos os cursos são certificados pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), por meio de convênio específico em nível de extensão.
Para o coordenador do Programa Educação Paralímpica, David Farias, o sentido do projeto ultrapassa a formação técnica e se relaciona com o direito das pessoas com deficiência de terem o esporte presente em sua formação e em seu cotidiano. “A principal missão do Comitê Paralímpico Brasileiro é a inclusão e, nessa perspectiva, o Educação Paralímpica se tornou uma ferramenta importante. O objetivo é garantir que as pessoas com deficiência tenham acesso ao esporte e possam dizer: ‘eu fiz aula de educação física’. Isso é um direito que exige a formação de professores e o trabalho articulado com a assistência social, a reabilitação e a área da saúde”, ressalta.
Primeiras ações
Após conhecer e realizar os cursos de formação do programa, a professora Raquel Canté reorganizou suas aulas para que os estudantes com deficiência participassem das atividades. “Quando os primeiros alunos com deficiência chegaram, entendi que não fazia sentido repetir aquela lógica de ‘ele não consegue, ele não vai fazer’. O que precisava mudar era o ambiente, e nós mudamos”, lembra.
Em seguida, a professora incorporou uma abordagem pedagógica voltada à inclusão e integrou modalidades paralímpicas à rotina da escola, levando para as aulas a bocha, o goalball e a corrida guiada. “Quando começamos a trabalhar com essas modalidades, a turma passou a compreender melhor as especificidades dos colegas. Os próprios estudantes sem deficiência ajudaram a criar adaptações para que todos participassem das aulas”, conta.
Essa mudança no cotidiano escolar, segundo ela, abriu espaço para novas oportunidades. “A partir desse cuidado compartilhado, conseguimos levar três alunos com deficiência para os Jogos Adaptados André Vidal, em Manaus. Esse foi o primeiro projeto de inclusão da escola”, acrescenta.
Depois das experiências em Manaus, foi nos Jogos Escolares Municipais de Tefé, realizado no município em que os estudantes viviam, que a transformação ganhou contornos mais próximos da realidade local. Muitas famílias, acostumadas a ver os filhos fora das atividades esportivas, acompanharam as competições com um orgulho que atravessava a quadra. “Os professores viram nos atletas os mesmos estudantes que, pouco tempo antes, ainda buscavam espaço nas atividades físicas da escola. A comunidade escolar inteira vivenciou esse momento, e isso mostrou que a inclusão transforma a vida de todos”, ressalta Raquel Canté.
Formação que transforma
Com o avanço do Programa Educação Paralímpica, a formação voltada ao esporte adaptado passou a alcançar diferentes regiões do país por meio de cursos de iniciação, habilitação técnica, seminários, formações a distância e atualizações especializadas. Essa estrutura se consolidou em uma rede que hoje envolve 58 parcerias ativas e outras 23 em processo de formalização.
O impacto dessas redes, seja a que nasce da formação voltada ao paradesporto ou outras que acompanham as pessoas com deficiência ao longo da vida, marca as histórias individuais. A trajetória do coordenador do programa, David Farias, que veio do sertão da Bahia e encontrou na educação a oportunidade de ocupar lugares que antes eram inacessíveis, mostra como esse trabalho amplia oportunidades e transforma vidas.
“Nasci no interior da Bahia, em uma família com 16 irmãos, e sou o único com deficiência. A educação criou muitas possibilidades na minha vida. Estudei em colégio interno, mudei de cidade, fiz curso técnico, pedagogia e dei aula na rede pública. Tudo o que alcancei veio das oportunidades que o estudo e o esporte me deram. Por isso, trabalhar com o Educação Paralímpica é também garantir que pessoas com deficiência tenham seus direitos garantidos e tenham condições de seguir adiante”, avalia.
Ampliação da inclusão
Após os resultados conquistados em Tefé, o trabalho de Raquel Canté seguiu para outros municípios do Amazonas. Em 2020, ela foi transferida para Lábrea, quase 900 quilômetros distante de Manaus, onde encontrou uma realidade marcada pela falta de formação docente e pela ausência de propostas voltadas aos estudantes com deficiência. Com o conhecimento adquirido no Programa Educação Paralímpica, a professora reorganizou práticas pedagógicas, passou a utilizar a estrutura existente como espaço de aprendizagem e desenvolveu projetos em que alunos monitores apoiavam colegas com deficiência.
“Em Lábrea, acompanhei alunos que nunca tinham participado de atividades físicas descobrirem que podiam aprender também pelo movimento. A quadra, a piscina e a academia da instituição se tornaram parte do processo pedagógico, e isso fez toda a diferença. Tinha estudante que quase não falava e começou a se comunicar mais, outros voltaram a frequentar as aulas. Percebi que, quando o ambiente acolhe, as possibilidades aparecem”, relata.
Caminhos que se encontram
Com a experiência de Lábrea demonstrando impacto na aprendizagem dos estudantes, a professora Raquel Canté assumiu, em 2025, turmas em Itacoatiara. O município, mais próximo de Manaus, reúne estudantes com diferentes tipos de deficiência e uma equipe multiprofissional em busca de referências práticas para fortalecer a inclusão. Nesse novo contexto, a professora aprende e compartilha formas de aplicar os aprendizados do Programa Educação Paralímpica.
Em Itacoatiara, Raquel passou a atuar com estudantes com deficiência visual, deficiência intelectual, autismo e deficiências múltiplas. “Aqui, cada estudante chega com uma história diferente, e isso me fez reorganizar tudo outra vez. Passei a adaptar materiais, criar novas propostas de movimento e trabalhar junto com a equipe multiprofissional. A cada semana víamos avanços que mostravam como o ambiente pode favorecer a participação”, relata.
Entre as histórias que guardou ao longo dos anos, Raquel lembra de Emanuela e Rikelme, estudantes com deficiência auditiva, e Luis Guilherme, com autismo, que viajaram de Tefé para Manaus para participar de jogos adaptados; de Luzia, estudante com deficiência física de Lábrea que competiu no parabadminton; e de Maykon e Jesus, ambos com deficiência intelectual, que se envolveram nas atividades esportivas e, durante esse processo, aprenderam a ler com o apoio da equipe pedagógica.
Os exemplos dos três municípios do Amazonas evidenciam a força e a abrangência nacional do Programa Educação Paralímpica, presente em todas as cinco regiões do país. Como parte do projeto, recentemente foi realizada uma formação presencial em Lábrea, reunindo 122 professores da rede estadual e municipal, incluindo profissionais da educação física e de outras áreas.
“Viajamos mais de 4.000 quilômetros de São Paulo, sede do Comitê Paralímpico Brasileiro, até Lábrea, para levar a formação diretamente aos professores e gestores locais. Ver o engajamento deles e a aplicação prática das atividades nas escolas evidencia que estamos construindo uma rede de apoio, inclusão e oportunidades em todo o país”, finaliza David Farias.
Como participar
O Programa Educação Paralímpica estabelece parcerias com secretarias municipais de educação e universidades interessadas em fortalecer práticas educacionais voltadas ao esporte adaptado. O interesse pode ser manifestado pelo e-mail educ.paralimpica@cpb.org.br ou pelo telefone (11) 4710-4195. Informações completas estão disponíveis em: www.educacaoparalimpica.org.br
Fonte https://cpb.org.br/noticias/educacao-paralimpica-programa-transforma-o-esporte-escolar-e-amplia-direitos-de-alunos-com-deficiencia/
Postado Pôr Antônio Brito
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