“Me chamo Rafaella Nunes, tenho 44 anos, sou médica pediatra, casada há 12 anos e mãe do Angelo, de 10 anos, e do Dante, que tem 7. Nasci em Colatina, no Espírito Santo, e me mudei para Vitória para fazer faculdade. Sempre tive dificuldade social e de criar laços, além de ter manias.
Quando criança, preferia brincar sozinha. Duas vezes por ano, nas férias, minha mãe me fazia brincar com as outras crianças. Nunca sabia o que fazer, nem o que falar. Eu dizia que era minha tortura semestral. Hoje é engraçado, mas na época eu não achava. Tinha hiperfocos, como ler compulsivamente; olhar mapas, adorava.
Enquanto as crianças queriam ganhar um pogobol, eu queria um atlas. Me identificavam na escola como a doidinha, a esquisita. Tenho sensibilidade auditiva, enquanto o professor estava explicando a matéria, precisava ouvi-lo sem conversa paralela. Era a chata que ficava pedindo silêncio. No hora do recreio, me escondia para que não precisar interagir.
Nunca dei trabalho, tirava notas muito boas, mas sofri muito bullying. Meu pai e a enciclopédia foram as grandes companhias na infância e adolescência. Eu amava. Pegávamos as enciclopédias e ficávamos discutindo um assunto.
A primeira amiga de verdade que eu tive foi quando entrei na faculdade, aos 18 anos. Antes disso eu tinha colegas. A Laila aceitava a minha forma de ser. Nunca fez grandes críticas ao meu jeito, como a mania de chegar no restaurante e sentar na mesma mesa, e se estivesse ocupada, eu ia embora. Não me julgou. Acho que foi a primeira pessoa que nunca me disse que eu era estranha e tenho um amor profundo por ela, como se fosse uma irmã.
“Aprendi a fingir ser sociável”
Colecionei diagnósticos errados, alguns certos, como depressão. Como médica, acredito que tinha depressão já na infância, mas fiz tratamento para bipolaridade, borderline e levantaram a hipótese de esquizofrenia. Tomava medicações que não funcionavam. Sempre soube que tinha algo que não se encaixava, eu devia ser uma paciente psiquiátrica.
Como sempre gostei de estudar, a faculdade não foi uma coisa tão difícil, mas quando acabei estava à beira de um meltdown – esgotamento emocional desencadeado por um grande estresse, como barulho ou quebra de rotina, onde pode haver choro e até auto agressão.
Hoje em dia, só trabalho com urgência e emergência. Gosto da surpresa que o pronto-socorro traz: o que será que eu vou atender agora? É um desafio diário para minha dificuldade em quebrar a rotina, me ensinou a me abrir para o desconhecido.
Gostava de boate. Olha que perfeito: você consegue se divertir, dançar, beber e ninguém quer conversar com você porque não dá para ouvir nada. A batida do som eletrônico não é uma frequência que me incomoda. Conheci o meu marido Gleison assim. Ele é tímido, mas veio conversar comigo.
O primeiro meltdown que ele viu ficou assustado, mas me acolheu, tentou me acalmar. Com o tempo, foi mudando algumas coisas em mim. Dizia que poderíamos nos divertir mesmo se não sentasse na minha mesa do restaurante. Começou a me convencer e, quando não conseguia, não ficava com raiva. Eu tinha essa questão de me achar estranha, mas ele dizia: “Gosto de você estranha mesmo, quem não é?”. Gleison sempre teve essa leveza.
Meu filho mais velho entrou na escola, aos 3 anos, e ficamos sabendo que ele não sabia socializar. Percebemos que nós dois também não. Antissociais, em três anos casados e dois de namoro, nunca havíamos recebido alguém em casa. Começamos a tentar um convívio. Hoje temos dois casais de amigos, olha que chique! Para mim isso é incrível.
Aos 3 anos, ele já estava lendo, o que se chama hiperlexia. Dante tem facilidade em línguas. Ele fala o alfabeto grego, o russo, canta as musiquinhas da Masha originais. Ele mesmo procura no Youtube e aprende, gosta de sentar com meu pai e ficam procurando as coisas.
Estávamos no começo do processo e fizemos um teste que mostra características de autismo. Meu pai disse que eu pontuaria mais do que o Dante. Ele estava certo, rimos: “Ah, estranha eu sempre fui, né!”. Comecei a estudar o autismo, a fazer curso, pós-graduação. Fui vendo cada dia mais que eu também parecia autista.
“O médico quis dizer que autistas são fracassados. Saí indignada do consultório”
É difícil o diagnóstico no adulto. Cheguei a ir em um psiquiatra que me disse que eu não poderia ser autista porque não tive fracassos na vida. Ele deu como exemplo o fato de eu nunca ter sido reprovada, de ter me formado. Não existe esse tipo de parâmetro para o diagnóstico. A fala dele foi de preconceito e de falta de conhecimento dentro da especialidade. Então acredito que ele quis dizer que autistas são fracassados. Saí indignada do consultório. O meu processo de diagnóstico com outra médica foi meticuloso, cerca de 12 horas de teste em 10 sessões avaliativas.
Agora tomo mais cuidado com as minhas dificuldades. Desde o diagnóstico, tive pouquíssimos meltdowns, pequenos, discretos, nenhum tão forte que parecesse um surto. As pessoas acham que o autista é uma pessoa que não pode ter sucesso na vida. Eu estou na ponta do espectro, tenho menos dificuldades do que outros autistas, mas também outras que talvez os mais severos não tenham.
Apesar de eu ter sempre sido estranha, difícil de lidar, a doidinha, meus pais sempre acreditaram no meu potencial. Acredite nos seus filhos. Isso vai formar a autoestima deles, vai ajudar a fazer com que eles acreditem neles próprios e vai fazer com que sigam em frente.
Meu diagnóstico foi importante também para eu mostrar para os meus filhos que estar no espectro não significa que temos que deixar nossos sonhos para lá. Todo mundo tem dificuldades e a gente tem que ir se virando com elas, tentando vencê-las, e ir em frente à procura do que queremos.
Pra mim é isso que faz a vida valer a pena: acreditar que eu posso o que eu quiser e passar isso para os meus filhos.
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