O isolamento e a ruptura abrupta de rotina já eram realidades conhecidas por Alessandra Martins, Natália Hipólito e Ademilson Costa bem antes da quarentena imposta para frear a pandemia de covid-19. Mas, no caso deles, o afastamento social teve razões mais profundas e igualmente complexas.
Foi necessidade de cuidar da saúde e da própria vida e também uma redoma criada por uma sociedade que olha feio para a diversidade humana, sob as lentes deturpadas do capacitismo, como é chamado o preconceito e a discriminação contra pessoas com deficiência.
Alessandra Martins, 24, foi atropelada por um ônibus que amputou parte de seu pé esquerdo no final de 2018. O acidente a fez ficar internada pela primeira vez.
Depois, ela voltou para casa por uma semana, mas teve uma infecção que a trancou novamente no quarto de hospital e arrancou parte de sua perna esquerda, até a altura da coxa. A jovem acredita que ficou por cerca de um mês internada, entre 22 de setembro e 18 de outubro daquele mesmo ano.
"Senti muita dor no começo, dores pós-cirúrgicas e síndrome do membro fantasma. Eu sentia muita dor no dedão do pé", lembra.
A dor em um membro que foi amputado atinge muitos pacientes e tem maior probabilidade de ocorrer se a dor antes da amputação tiver sido intensa, durado por muito tempo ou se a perda aconteceu por causa de traumatismo, de acordo com o Manual Merck de Diagnóstico e Terapia.
A sensação tende a diminuir com o tempo ou desaparecer com o uso da prótese, ainda segundo o livro. Alessandra explica que chegou a fazer fisioterapia pelo SUS (Sistema Único de Saúde). De acordo com ela, o processo de protetização demora seis meses. Antes dele, ela andava com o auxílio de muletas.
"Acabou que nesse tempo consegui o dinheiro e preferi o particular, porque estava ansiosa demais para começar o processo, que é muito mais rápido no particular do que no SUS", afirma.
A jovem, que mora num morro da favela Santa Marta, na zona sul do Rio de Janeiro, conseguiu juntar R$ 30 mil previsto no orçamento graças a uma vaquinha online. Ela levou mais um ano para "conseguir andar minimamente" com a prótese. "Os componentes da prótese não são feitos para pessoas com coxa grossa, como eu", explica.
O isolamento foi a primeira consequência social do atropelamento. "Assim que aconteceu o acidente, eu já me acostumei com o fato de ficar em casa e acabei me isolando muito", conta,
A falta de acessibilidade e o constrangimento causado pelo medo de incomodar as outras pessoas foram os alicerces da situação.
"Eu era muito dependente dos outros para descer escada e ladeira. Aí eu fiquei 'cara, não vou incomodar os outros'. Eu saía quando meus amigos se esforçavam. Mas não rolava, eu me sentia incomodada com a ideia de incomodar os outros", explica.
Para sair, ela precisa passar por degraus e uma ladeira. "Eu moro na parte de baixo do morro, então não tenho que descer muito, mas é o suficiente para incomodar", diz, referindo-se às sensações em seu corpo.
Os degraus são regulares, mas a finura de cada um dificulta a jornada. "Desço uns 10 lances, não é muita coisa não. E depois a ladeirinha", descreve.
Nesse contexto, a necessidade de fazer isolamento social para evitar o contágio pelo novo coronavírus não foi motivo de sofrimento.
Alessandra diz que sempre se enxergou como uma pessoa negra, mas a noção de ser alguém com diversas identidades e a dimensão da opressão vivenciada por todas elas veio com o tempo. E ela destaca que cada um tem o seu.
"Eu sou perpassada por diversas identidades: mulher, preta, gorda, com deficiência, favelada. Nossas identidades são construídas, a gente 'se torna' no momento em que entende o que isso significa", afirma.
No entanto, o acidente não lhe deu tempo para se entender como uma pessoa com deficiência. "No meu caso foi drástico. Eu não tive direito a esse processo de me entender nessa opressão. Tudo aquilo que leva tempo eu tive que fazer de um dia para o outro", analisa.
Passar a ter um corpo com deficiência roubou parte da liberdade e as múltiplas identidades de Alessandra - embora cada uma delas traga consigo um tipo diferente de opressão. Essa violência dificultou seu autoconhecimento.
"Eu sempre fui muito afrontosa para as coisas. Sempre fui sem medo para a rua, o que é um pouco perigoso em algumas situações, mas eu sempre me garanti muito por ter feito luta a minha vida toda. Achava que nada ia acontecer comigo", recorda.
"Acho que o que me enquarentenou em casa foi a deficiência, tanto o medo de trazer a doença para casa na atual conjuntura como também antes da pandemia, por sentir que estava atrapalhando o rolê dos outros. eu preferia não sair. Hoje em dia eu me sinto muito mais dentro de casa, obrigatoriamente", analisa.
A jovem, que ama ir a praia e vai se formar em ciências sociais com um trabalho sobre mulheres negras com deficiência, diz que foi difícil enxergar a si mesma com todas as suas camadas depois que o acidente mudou sua condição de vida.
Natalia Hipólito, 22, teve pesadelos no início da quarentena e não conseguiu segurar o choro quando, durante uma reunião online, contou como estava sendo sua rotina no home-office. Ela já tinha trabalhado em casa antes da pandemia. Mas isso acontecia esporadicamente, quando precisava ir ao médico, por exemplo.
"Quando minha gerente pediu para ficar em casa, levei numa boa. Mas quando vi que não tinha previsão para voltar, fiquei sem chão", conta. "Eu sou uma pessoa agitada, social, tenho a necessidade de ter contato físico com outras pessoas", acrescenta.
Como se não bastasse o desafio de lidar com o isolamento, ela ainda estava na fase final de seu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) na faculdade de design. "Um professor meu sabia que sou do grupo de risco e falou 'eu não sei como será daqui para a frente, mas é para você ficar em casa'", recorda sobre sua útima sessão de atendimento presencial pré-TCC.
Ver sua casa virar trabalho e faculdade, como ela mesma descreve, gerou uma avalanche de emoções. "Foi muito difícil para mim essa questão de não separar os ambientes e viver todas as rotinas do meu dia no mesmo lugar, no computador, na cadeira. Foi sufocante", define. "Meu maior medo era não me adaptar e continuar tendo essas crises de choro, vivendo nos extremos emocionalmente", desabafa.
Natalia chegou a passar cerca de 19 horas de seu dia em frente a uma tela de computador. Sentada em uma cadeira convencional, que não supria as necessidades de seu corpo. Depois de 15 dias, ele reagiu a essa inadequação.
"Começou a me bater cansaço físico de ficar na mesma posição. Quando eu mudei pra vida interna, ficava o dia inteiro na cadeira normal de computador, que não é adaptada para mim, para a minha escoliose", relata.
Agora, ela passa os dias na cadeira adaptada e automática com que costumava explorar o mundo exterior. "De vez em quando, no final do dia, eu deito e estico o corpo", detalha.
Antes da quarentena imposta para tentar frear a disseminação do novo coronavírus, o período mais longo de isolamento vivenciado por Natalia aconteceu em dezembro de 2007, quando operou da escoliose. "Minha avó ficava integralmente comigo. Eu pensava que ia ficar internada no máximo 10 dias e acabei ficando mais", conta.
Foram 20 dias de irternação. O sufuciente para lhe impedir de se formar na antiga quarta série ao lado de seus colegas. "Eu já tinha pagado o vestido, tudo, e não pude ir", lamenta. "Aí fizeram uma homenagem, mas eu não estava lá, então foi triste, mas recompensei isso depois", pondera.
O isolamento hospitalar afetou sua saúde mental e física de diversas formas. "Passei estresse emocional, perdi muitos quilos, fiquei uma pena. Peguei anemia e infecção hospitalar", lembra.
Ainda havia a incerteza de não estar em casa no Natal e em seu aniversário, duas datas consecutivas. Por fim, ela recebeu alta três dias antes de completar mais um ano de vida.
Todos os 50 pontos que ela levou na coluna estouraram. Os médicos não sabem se isso aconteceu por causa da infecção ou da distrofia muscular, que faz com que a pele de Natalia seja muito fina. "Lá no hospital tinha muito residente, então eles faziam muitas suposições e ficavam chocados porque eu não sentia dor. Não precisei tomar remédio", explica.
Graças ao apoio da avó e da mãe, Natalia não foi impedida de viver as experiências de infância comum às crianças sem deficiência. Mas antes, elas tiveram que superar o capacitismo da direção da escola, que, de cara, tentou mantê-la isolada dos colegas. "Tinham receio de que eu não acompanhasse as outras crianças", explica.
Como todo preconceito, este não tinha nenhum embasamento em evidências, dadas em um relatório feito por uma psicopedagoga da AACD, que atestava a capacidade intelectual de Natália.
Apesar dessa barreira, ela conseguiu se matricular na escola e fez de tudo: desde ir ao parque aquático até participar das aulas de educação física - sempre à sua maneira.
Além disso, nos últimos meses o jogo virou. Se para alguns a quarentena é sinônimo de estagnação, para Natalia se tornou um período de mudanças e novas fases.
Dessa vez, o isolamento não foi obstáculo para a conclusão de um período acadêmico com direito a elogios da professora convidada para sua banca de TCC, que aconteceu em junho.
"Ainda é difícil de acreditar que essa semana se encerrou um ciclo de anos na minha vida. Assim como é difícil de acreditar que ele se encerrou mesmo em meio ao caos que estamos vivendo", disse em uma rede social.
Natalia também provou que existe amor em tempos de pandemia. Apesar da distância física, o relacionamento com Álvaro não só seguiu firme como atingiu outro nível. O pedido de namoro só precisou de alguns ajustes: foi feito online e não em um bar de jazz, como o planejado.
"Eu sou muito ansiosa, queria a data certa e o momento certo", enfatiza. E assim aconteceu: no dia 8 de maio, seis meses após o primeiro encontro, ela fez a surpresa e ele disse sim.
Se ver obrigado a ficar em casa e ter que conciliar faculdade e trabalho no ambiente domiciliar também deixou Ademilson Costa, 32, abalado. Logo no início da quarentena, ele ficou sobrecarregado.
"Para mim, está sendo muito desafiador principalmente no começo. Aumentou a demanda da faculdade e eu não conseguia dar conta. Fiquei muito apreensivo", conta. "Essa questão de não poder sair afetou muito meu emocional. A gente precisa muito das mãos para se locomover, então o cuidado é redobrado", acrescenta.
O problema é que a instituição onde ele estuda serviço social sequer tinha estrutura para se adaptar ao ensino a distância e não dispunha de recursos de acessibilidade para pessoas cegas, como ele.
Ademilson usa leitores de tela no computador e no celular para conseguir acessar conteúdos na internet. "Sem esse recurso a interação de pessoas com deficiência visual se torna impossível", resume.
Em abril, ele voltou a trabalhar na gráfica da Fundação Dorina Nowill para Cegos. Por conta da pandemia, o trajeto que antes era feito de transporte público, agora é percorrido em um táxi corporativo.
"Em parte eu gostei de voltar. Parece que em home-office a gente trabalha muito mais. E em parte eu não gostei não, porque eu estava terminando o bimestre e não tinha tempo para a faculdade", explica.
Adelmilson nasceu com catarata congênita. Nos primeiros 12 anos de sua vida, ele via cores, jogava bola e empinava pipa. A diferença é que se o mundo todo fosse dividido em cinco partes, ele enxergaria apenas uma delas, porque tinha 20% da visão. Mas há 18 anos essa fresta se perdeu.
"O que muito me ajudou foi o apoio e carinho da família. A escola em que eu estudava já tinha uma professora especializada em educação para pessoas com deficiência visual e ela me alfabetizou em Braile", conta.
Apesar da inclusão, ele precisou repetir a segunda e a quarta série do ensino fundamental e concluiu essa fase em 2005, aos 17 anos.
No ano seguinte, ele começou seu processo de reabilitação na Fundação Dorina. Mas parou de estudar e pensou em desistir. A segurança dentro de casa era bem mais atraente do que a vida em um mundo que não foi construído para acolher pessoas com diferentes condições de vida.
Naquela época, Ademilson sustentava ele e a família, composta por 10 pessoas, com uma renda de R$ 300 que vinha do BPC (Benefício de Prestação Continuada), pago pelo governo federal a pessoas com deficiência e idosos.
"A gente não tinha casa própria. Fomos para Cotia (SP) por causa do custo de vida. Mas ficamos lá só um mês e meio. Foi muito difícil", lembra. "O que me ajudou muito foram os atendimentos com assistente social e psicólogos", acrescenta.
Na Fundação Dorina, ele encontrou amparo para entender sua nova condição de vida, conquistou autonomia e encontrou um novo amor.
Em 2007, depois de concluir sua reabilitação, ele foi contratado para trabalhar na gráfica da instituição, setor para onde retornou durante a quarentena. Mas sua atual função é analisar a acessibilidade de sites e aplicativos na web.
"Meu sonho é me formar em serviço social. Eu quero trabalhar aqui dentro para ajudar as pessoas que estão passando pelo que eu já passei", ressalta.
Em maio de 2013, ele conheceu sua companheira. Um ano depois, eles já estavam casados. Ademilson conta que antes da quarentena, ele costumava pessear com a esposa e a enteada em museus e shoppings. As duas também são cegas.
Aos finais de semana, ele ia visitar os pais e os irmãos. Mas o encontro com a família toda reunida não vai mais acontecer nem quando for possível ir da zona norte para a zona oeste da cidade de São Paulo. Seu pai perdeu a vida para a covid-19 no final de maio.
Fonte: https://noticias.r7.com/saude/pessoas-com-deficiencia-relatam-isolamento-bem-antes-da-pandemia-05072020
Postado por Antônio Brito
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