O Transtorno do Espectro Autista (TEA) atinge 1% da população mundial, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), e, em idade adulta, 80% dos autistas estão desempregados. A dificuldade de inclusão no mercado de trabalho é impulsionada por desinformação sobre a condição, que se apresenta em diversos graus. Os autistas não são impossibilitados de trabalhar. Precisam apenas de suporte humano para lidarem com dificuldades na interação e, algumas vezes, de pequenas adaptações físicas em ambientes — como luz baixa ou redução do barulho — para exercer as funções com tranquilidade. Os ganhos com isso vão desde o desenvolvimento de autonomia até a redução da ocorrência de suas crises. Por isso, diversos projetos têm buscado alertar empresas no país e tornar mais comuns histórias como a do Luiz Alberto Fonseca, de 39 anos, que é auxiliar de Operações no Prezunic desde 2009.
— Com o trabalho, consegui guardar dinheiro, comprar minhas coisas e as coisas de casa. Mudou a minha vida, mudou tudo. Nunca mais fui internado. Nunca mais tive crise. Tenho novos amigos — diz Luiz, em conversa com a psicóloga e coordenadora do Projeto de Gerência de Trabalho (PGT), Ana Cecília Salis, a pedido da reportagem, que enviou as perguntas e recebeu a gravação das respostas.
Luiz é autista e começou a trabalhar aos 28 anos, através do projeto de Ana. No Rio de Janeiro, o trabalho de sua consultoria de emprego assistido é feito, desde 2008, através do contrato com a rede de mercados e da parceria com institutos e hospitais. Através da metodologia de Emprego Apoiado, que surgiu nos Estados Unidos na década de 80, ao invés de capacitar o autista para ingresso posterior no mercado de trabalho, Ana propõe a inserção gradual e com acompanhamento dos autistas.
Segundo Ana, o trabalho desempenhado há 12 anos teve dois marcos principais:
— O primeiro foi o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público, uma medida protetiva inédita para essa turma da saúde mental, que permitiu que elas trabalhassem no Prezunic. O segundo foi quando o MP acabou por determinar a inclusão das pessoas com transtorno mental na categoria de “Deficiência Psicossocial Mental” da Lei de Cotas das vagas nas empresas. É importante, pois ficaria muito difícil fazer a inclusão dessas pessoas no mercado de trabalho sem uma contrapartida.
Características comuns em um grupo heterogêneo
As pessoas autistas formam um grupo heterogêneo. Ou seja, embora tenham características comuns — como a comunicação social atípica e a ótima memória de longo prazo—, os desafios e potenciais não são sempre os mesmos, nem as intensidades com que são expressados. Por isso, as adaptações precisam ser individualizadas, bem como os preenchimentos de vagas.
— Atualmente, a SAP tem 15 autistas colaboradores, sendo quatro estagiários. Alguns precisam usar fone, outros precisam de luz mais baixa, têm os que preferem trabalhar de casa. Não tem como a gente dizer que eles são iguais — diz Eliane De Mitry, gerente de Recursos Humanos na SAP Brasil, que tem autistas em posições nas áreas de Vendas, Tecnologia da Informação e Administração.
Engana-se quem pensa que só ganham com a inclusão os autistas e suas família.
— O nosso objetivo é ter mais cinco autistas no quadro de funcionários até o fim do ano no Brasil. Os nossos estudos internos mostram que eles trazem visões diferentes e inovadoras para a companhia. Podemos estar dando voltas em um problema, discutindo, e um autista ver uma saída mais fácil, objetiva. Além disso, há uma mudança no ambiente de trabalho com eles. Os funcionários relatam que a energia é mais positiva e se orgulham de estarem na empresa — diz a gerente da SAP.
O programa de contratação na empresa é feito — globalmente, desde 2013, e no Brasil, desde 2015 — em parceria com a Specialisterne, uma empresa social criada na Dinamarca por Thorkil Sonne, pai de um autista. Seu modelo é baseado na percepção da capacidade de concentração, da constância, da memória visual e do raciocínio lógico como características comuns do grupo e importantes para a área de tecnologia.
— Temos uma formação de 400 horas gratuitas, em quatro meses, na área de tecnologia. E com um grupo de psicólogos, buscamos, através de um plano individual, desenvolver os autistas para encaminhá-los a uma vaga de uma empresa parceira — conta o diretor geral Marcelo Vitoriano.
Mais de 90% permanece empregada após um ano
Cada nova turma é divulgada nas redes sociais da Specialisterne. A unidade de formação brasileira fica em São Paulo, mas outros estados, como o Rio, já receberam ações pontuais. A ideia também é que, em cinco anos, cinco estados recebam unidades de formação: entre eles, o Rio. No país, atualmente, são 20 empresas parcerias, com 110 profissionais empregados. A retenção dos autistas após um ano é de 93%. Claudia Miranda, de 39 anos, integra essa estatística, já que desde 2017 é funcionária da área de Vendas da SAP.
— Eu uso fone de ouvido, por causa do barulho. E as instruções para mim vêm por escrito, pois eu prefiro. Mas, durante a maior parte do tempo, eu nem lembro que tenho TEA aqui dentro — diz ela, contando que sua vida mudou muito em dois anos: — Além de me sentir mais relevante, por trabalhar, e ter meu dinheiro, o que me permite fazer planos. Antes, eu não saía praticamente de casa, tinha crises feias dentro de restaurantes. Agora, saio com meus colegas de trabalho para almoçar. Vou a shoppings até em época de Natal. Isso é ganho para a vida pessoal.
Conversando por telefone com a reportagem, Claudia lembra que já tinha trabalhado anteriormente, por dois anos, em uma clínica de Fonoaudiologia, área em que concluiu o primeiro curso de ensino superior (atualmente, faz graduação em Tecnologia da Informação). Mas a experiência não foi boa.
— Eu tinha crises, pois qualquer mudança ou barulhos me abalavam muito. Então falavam para eu ir para casa, ficava afastada por longos períodos do trabalho. O pessoal não sabia lidar e fazer a inclusão — recorda ela.
Preparação das empresas é fundamental
Por isso, a sensibilização das empresas que recebem autistas é fundamental. O Instituto Jô Clemente (antiga Apae de São Paulo) tem um Serviço de Inclusão Profissional que atua também com autistas. E o supervisor Victor Martinez conta:
— Trabalhamos em três etapas. A primeira é a descoberta de perfil do autista, aplicando algumas dinâmicas para entender onde estão suas potencialidades. A segunda é o mapeamento, junto a empresas ou instituições públicas, de vagas de emprego que combinem com ele, e a preparação do ambiente de trabalho para recebê-lo. A última etapa é o acompanhamento, por 12 meses iniciais, do autista e do ambiente. Pois é na prática que surgem as necessidades de apoio.
Desde 2013, o serviço já incluiu 507 pessoas com autismo ou deficiência intelectual no mercado de trabalho — o instituto não tem dados separados — e 90% deles permaneceram empregados. Giovani Dian, de 25 anos, é um dos mais recentes autistas atendidos pelo projeto.
— Comecei a trabalhar em agosto de 2019, mas já estou interagindo mais com as outras pessoas, aprendendo funções, seguindo algumas regras de trabalho, tendo ética e melhorando minha comunicação. Estou fazendo amizades, tendo respeito e responsabilidade com quem eu conheço. Esse é meu primeiro emprego, percebi que ele me ajudou a socializar mais com as pessoas e principalmente a ter mais liberdade e autonomia — narra Giovani, em entrevista concedida por e-mail.
O Instituto Jô Clemente está em fase de expansão. Até março deste ano, deve começar a operar no Rio de Janeiro.
Além de trazer benefícios a todos os lados, a inclusão no mercado de trabalho é um direito garantido pela Convenção Internacional pelos Direitos das Pessoas com Deficiência e pela Lei Brasileira de Inclusão.
— Toda pessoa com deficiência tem o direito de se manter com um trabalho de sua livre escolha ou aceitação, em um ambiente de trabalho que seja aberto, inclusivo e acessível. Quando falamos de acesso ao mercado de trabalho, estamos falando indiretamente dos direitos à igualdade, não-discriminação, e também à vida independente e inclusão na comunidade — pontua Fernanda Santana, presidente da Associação Brasileira para Ação pelos Direitos das Pessoas com Autismo (Abraça).
Fonte https://extra.globo.com/noticias/economia/projetos-inserem-autistas-no-mercado-de-trabalho-para-cair-taxa-de-80-de-desemprego-24224474.html
Postado por Antônio Brito
Nenhum comentário:
Postar um comentário