17/02/2020

'Por que passei quatro anos sem compartilhar uma foto que mostra quem eu realmente sou'


Gustavo Freitas,Direito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionGustavo em uma imagem compartilhada nas redes sociais meses atrás: ele escondia o fato de ser cadeirante

Na tarde de terça-feira (11), o jovem Gustavo Freitas, de 20 anos, decidiu fazer uma publicação que considera extremamente importante para si. Pela primeira vez, ele compartilhou uma foto em uma cadeira de rodas. A imagem representou uma forma de o jovem se libertar da vergonha que tinha de falar abertamente sobre ter se tornado cadeirante.
"Nunca postei foto na cadeira. Muitos nem sabem desse pequeno detalhe. Depois de quase quatro anos, essa vai ser a primeira de muitas fotos. Me privei de muitos momentos legais durante esse tempo", escreveu no texto que acompanhou a imagem, na qual ele aparece sentado na cadeira de rodas em uma cachoeira.
A publicação do jovem, que mora em Manaus (AM), viralizou nas redes e comoveu diversas pessoas, que elogiaram a atitude dele. "Você é inspiração para muitos", escreveu uma mulher. "Gigante! percebeu que o grande barato da vida é viver de verdade", disse outra.

Short presentational grey line"Quando eu tinha 16 anos, tinha uma vida muito ativa. Trabalhava como menor aprendiz, jogava futebol e treinava jiu-jitsu. Sempre fui muito voltado para os esportes. A minha vida era tranquila, até que comecei a sentir dores nas costas, como se algo estivesse me rasgando.

Essas dores fortes começaram em uma sexta-feira. Naquele fim de semana, elas foram suportáveis. Mas na segunda-feira, se intensificaram muito e eu tive de procurar atendimento médico em um hospital público perto de casa. Os médicos disseram que era virose. Me receitaram remédios, voltei para casa e as dores continuaram da mesma forma.

Gustavo FreitasDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionFoto em cachoeira, publicada na tarde de terça-feira (11), foi a primeira imagem em uma cadeira de rodas compartilhada pelo jovem

Fui ao hospital nos dias seguintes e sempre diziam que não era nada muito grave.
Comecei a sentir pontadas muito fortes no peito esquerdo. Cheguei a fazer um eletrocardiograma, que apontou que não havia nenhum problema no meu coração. No dia seguinte, o meu pescoço ficou rígido e tive febre. Pareciam sintomas de meningite. Fiz os exames, que deram negativo para a doença.
Na sexta-feira, uma semana depois do início do mal-estar, as dores estavam intensas. Fui dormir durante a tarde, com as minhas pernas formigando. Quando acordei, por volta das 17h30, não senti mais as minhas pernas. Como eu tinha pernas fortes porque sempre joguei futebol, pensei que fossem câimbras.
Meus parentes me carregaram ao hospital. Fiz vários exames para ver diversas doenças que poderiam ser, mas nada foi confirmado.
Os médicos descobriram que havia um abscesso, como se fosse uma bola de pus, na região torácica da minha coluna cervical, nas proximidades da minha nuca. Passei por uma cirurgia de emergência. Depois, fiz tratamento com antibióticos. Mas ainda assim perdi os movimentos das minhas pernas.
Até hoje não sei o que me deixou na cadeira de rodas. Os médicos não souberam me informar exatamente o que causou essa bola de pus na coluna.

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Image captionPara não aparecer a cadeira de rodas nas fotos, jovem costumava aproveitar momentos em que conseguia ficar em pé para fazer os registros

Acredito que se tivessem percebido que a minha dor nas costas era algo mais grave, eu não estaria na cadeira de rodas hoje.
Logo depois da cirurgia, fiquei tetraparético, que é quando a pessoa consegue mexer apenas os braços, mas com dificuldades. Fiz fisioterapia, meu quadro melhorou e hoje sou considerado paraparético, quando o paciente tem movimentos das pernas, mas ainda assim tem dificuldades para andar.
Eu não tenho muita força nos pés, então não consigo andar como antes. Hoje em dia, consigo ficar em pé, com certo apoio, e dar alguns passos com muleta. Mas são passos lentos. Por isso, preciso da cadeira de rodas o tempo todo.
Logo que recebi alta hospitalar, ganhei uma cadeira de rodas de uma associação que auxilia cadeirantes. A minha mãe não tinha condições financeiras para comprar uma, pois custa de R$ 2 mil a R$ 4 mil. A minha cadeira não é motorizada, mas consigo conduzi-la sozinho o tempo todo.

A vida de cadeirante

Logo que me tornei cadeirante, passei um ano praticamente sem sair de casa. Foi uma época em que fiquei revoltado com a vida. Fui a apenas dois lugares, por insistência de amigos próximos. Eu tinha muito vergonha de que as pessoas me vissem sem andar. Foi muito triste. Não foi fácil perder tanta coisa da vida aos 16 anos.

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Image captionGustavo também publicava imagens sentado, mas sempre sem mostrar a cadeira de rodas

Nunca tive coragem de publicar minhas fotos na cadeira de rodas. Tinha vergonha e pensava que poderiam me encarar como um coitado. Pessoas com deficiência não são coitadinhas. Temos capacidade para fazer qualquer coisa, mas talvez com um pouco de dificuldade.
Eu postava somente fotos nas quais eu aparecia em pé, nos momentos em que conseguia me equilibrar, ou sentado em outro lugar, como em cadeiras comuns. As pessoas com as quais eu convivo sabiam que eu era cadeirante, mas não queria que aquelas que não me viam desde antes do problema de saúde, ou aquelas que me conheciam apenas na internet, também soubessem da minha condição.
Havia muita gente que eu conhecia antes das dores nas costas e que nunca me viu em uma cadeira de rodas, pois eu e minha mãe nos mudamos. Nós morávamos no segundo andar de um prédio e isso complicava a minha locomoção, por isso fomos para uma casa.
Muita coisa mudou em minha vida desde a cadeira de rodas. Somente no ano passado terminei o ensino médio, que havia abandonado para me dedicar intensamente à minha tentativa de voltar a andar. Agora quero fazer um curso superior, mas estou em dúvida entre fisioterapia, direito ou educação física, que são áreas que me agradam.
Desde o princípio da minha vida como cadeirante, me esforcei para me tornar independente. Hoje já consigo tomar banho, comer e fazer muitas atividades sem precisar de ajuda.
O preconceito e a falta de acessibilidade para cadeirantes me incomodam muito. Passo por problemas nas ruas e nos ônibus. Também tenho, às vezes, dificuldades para chamar um motorista de aplicativo, porque muitos dizem que não vão me levar, pois minha cadeira não vai caber no porta-malas e não vão conseguir me transportar.

A busca pela independência

Sempre pensei que ser independente é a melhor forma de encarar a minha nova fase da vida. Há quatro meses, entrei em um time de basquete para cadeirantes e isso tem me feito muito bem, além de me ajudar a, cada vez mais, aprender a controlar meu próprio corpo e a cadeira.

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Image captionHá quatro meses, jovem começou a fazer basquete em time com outros cadeirantes e diz ter se apaixonado pelo esporte

Junto com esses avanços, também veio a decisão de publicar minha primeira foto na cadeira de rodas em meus perfis no Facebook e no Instagram. Foi um momento muito importante para mim. Queria que as pessoas refletissem mais sobre o assunto, para que pensem sobre a vida e deem mais valor a pequenas situações.
A repercussão da minha foto me surpreendeu. Não imaginava que fosse atingir tantas pessoas. Fui muito elogiado pela coragem. Muitas pessoas me disseram que se sentiram motivadas pela minha publicação, principalmente outros cadeirantes.
Depois de me prender por tanto tempo, hoje, aos 20 anos, quero aproveitar a dádiva de estar vivo e não sentir mais vergonha de quem eu sou. Ainda sonho em voltar a andar, mas sei que isso ainda vai levar tempo.
Estar em uma cadeira de rodas mudou minha forma de pensar sobre tudo. Se todas as pessoas ficassem ao menos um mês em uma cadeira de rodas, com certeza veriam o mundo melhor e dariam valor a pequenas oportunidades."
Fonte  https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-51481302
Postado por Antônio Brito 

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