
OPINIÃO
- Por Jairo Varella Bianeck
Quando o direito à dignidade passa por um laudo
O Benefício de Prestação Continuada (BPC) é, para milhões de brasileiros, a única renda possível diante da exclusão e da pobreza. Previsto no art. 203, inciso V, da Constituição Federal, o benefício garante um salário mínimo a idosos e pessoas com deficiência que não conseguem se sustentar. Mas até que o direito vire realidade, há um caminho tortuoso — técnico, lento e muitas vezes desigual. Para mudar isso, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou, em 2025, a Resolução nº 630. A norma cria um modelo único de avaliação biopsicossocial da deficiência, que todos os tribunais do país deverão adotar a partir de 2026. A proposta soa promissora: justiça com critérios iguais para todos. Mas, como quase tudo no sistema brasileiro, a execução levanta dúvidas.
Deficiência não é só diagnóstico, é contexto
A principal mudança é de olhar. Com a nova regra, a Justiça deixa de focar apenas no laudo médico e passa a considerar as barreiras sociais, ambientais e econômicas que limitam a vida de quem tem deficiência. A norma incorpora o modelo social defendido pela Lei Brasileira de Inclusão no art. 2º, §1º e pela Convenção da ONU: uma abordagem que vê a deficiência como resultado da interação entre o corpo e o mundo. A avaliação passa a ser feita por uma equipe composta por perito médico e assistente social, com um questionário detalhado baseado na Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF). Essa mudança, se bem implementada, pode tornar o processo mais justo e conectado com as vivências reais.
Técnica a serviço da equidade ou da burocracia?
A padronização promete reduzir desigualdades entre decisões judiciais, fortalecendo a previsibilidade e a isonomia. Pela regra, o laudo técnico orienta o juiz, mas não o obriga. A decisão continua sendo do magistrado, desde que fundamentada. Mas há um risco. Quando regras técnicas se tornam muito rígidas, elas correm o perigo de serem aplicadas como receita de bolo — sem escuta, sem contexto, sem alma. O desafio é garantir que o instrumento técnico ajude, sem virar mais um obstáculo automatizado.
Tribunais despreparados, vidas em espera
Nem todo fórum do país está pronto para aplicar a resolução. Em muitas cidades, faltam profissionais especializados, estrutura mínima e acesso digital adequado. Isso pode transformar uma boa ideia em mais um fator de atraso. E, no caso do BPC, tempo é uma questão de sobrevivência. Além disso, o sistema de Justiça brasileiro tem histórico de desigualdade estrutural. Sem investimento sério e planejamento federativo, a padronização corre o risco de aprofundar injustiças — em vez de reduzi-las.
Quem foi ouvido nessa decisão?
Apesar de se tratar de um tema que impacta diretamente a vida das pessoas com deficiência, muitas entidades e movimentos sociais relatam que não participaram da construção da Resolução nº 630. Isso fere um princípio básico da democracia participativa: nada sobre nós sem nós. Políticas públicas voltadas à inclusão precisam ser feitas com escuta ativa e respeito à experiência de quem vive a exclusão. Sem isso, mesmo boas intenções podem gerar efeitos perversos ou distantes da realidade.
O que ainda precisa ser feito e com urgência?
Para que a Resolução funcione como se espera, algumas medidas são indispensáveis:
• Formação em larga escala de assistentes sociais e peritos com domínio da nova metodologia;
• Ampliação da estrutura dos fóruns, especialmente nas regiões mais vulneráveis;
• Revisões periódicas do instrumento, com escuta pública e dados abertos;
• Fiscalização ativa da sociedade civil e das defensorias públicas. A inclusão não pode ser um projeto de gabinete. Ela precisa se enraizar nas realidades diversas do Brasil profundo.
A norma existe. Mas quem precisa dela ainda espera
A Resolução nº 630 representa uma tentativa importante de tornar o Judiciário mais sensível à complexidade da deficiência. Ela reconhece que justiça não é apenas aplicar a lei, mas considerar a vida concreta de quem está diante do juiz. Isso, por si só, já é um avanço. Mas nenhuma norma vale por si só. O Brasil é um país de desigualdades profundas, onde a boa vontade da lei precisa enfrentar o abismo da prática. Transformar uma avaliação técnica em instrumento de inclusão exige mais do que formulário: exige compromisso político, investimento público e escuta das vozes historicamente silenciadas. A norma está escrita. Agora, resta saber se ela será vivida.
“O Brasil é um país de desigualdades profundas, onde a boa vontade da lei precisa enfrentar o abismo da prática.”
- * Jairo Varella Bianeck é Advogado, Militante do campo progressista e Defensor dos direitos das pessoas com deficiência
Fonte https://diariopcd.com.br/laudo-ou-sentenca-quando-a-deficiencia-vai-a-julgamento-e-o-cnj-tenta-escrever-novas-regras-para-o-que-nunca-foi-so-papel/
Postado Pôr Antônio Brito
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