* Por Dr. Edson Constantino Chagas de Queiroz
Uma das garantias fundamentais presentes nas constituições modernas é o chamado “direito de livre locomoção”. Na Constituição de 1988, essa garantia está consagrada no artigo 5º, XV: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.
A despeito de sua grande relevância, ao analisarmos os manuais e livros que tratam do direito constitucional brasileiro, poucas citações serão encontradas sobre o chamado “direito de ir e vir”, como comumente é chamado o “direito de livre locomoção”, se comparado às demais garantias fundamentais expressas em nossa Carta Magna.
A ideia de ir e vir são muito amplos, estando associada ao livre trânsito dentro das cidades, à locomoção entre cidades dentro do território nacional, à liberdade de deixar o Brasil e de nele ingressar quando bem entender, passando ainda a ser usada no discurso político para expressar o direito do cidadão de se locomover no espaço urbano.
No entanto, não é necessário um estudo aprofundado sobre as condições de locomoção dos brasileiros para se verificar o quanto somos carentes de políticas públicas e de atitudes práticas capazes de solucionarem os infinitos problemas de deslocamento enfrentados pelos cidadãos dentro do território nacional.
Se para as pessoas que não possuem nenhum tipo de deficiência já se torna uma aventura uma simples caminhada pelas ruas das nossas cidades, o que dirá para aqueles que possuem algum tipo de deficiência ter que se locomover em calçadas, muitas vezes, mal iluminadas, totalmente esburacadas (isso quando se tem calçada), desviando de postes, de fiação elétrica caída no passeio, subindo e descendo os degraus gerados pelas rampas de garagens, dentre tantos outros obstáculos.
Tendo em vista esta premente necessidade de promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida e, em atendimento ao direito fundamental de livre locomoção, a Lei 8.989, de 24 de fevereiro de 1995, garantiu direito à isenção de impostos para pessoas com alguns tipos de deficiências ou doenças crônicas que comprometam a mobilidade.
Segundo dados publicados em 14/08/19 pelo site Autopapo[1], o Brasil tinha 46 milhões de pessoas com deficiência (PcD) em 2010. O dado é do último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), onde a soma das dispensas dos encargos – IPI ( Imposto sobre Produtos Industrializados ), ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores) e IOF (Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou Relativas a Títulos ou Valores Mobiliários). – podem chegar a 20% ou 30% do valor do veículo escolhido.
De acordo com a citada fonte, em 2016, segundo a Associação Brasileira das Indústrias e Revendedores de Produtos e Serviços para Pessoas com Deficiência (Abridef), foram vendidos 139 mil carros com isenção de IPI e ICMS. Em 2017, o número passou de 187 mil. Apenas no primeiro semestre de 2018, as isenções para PCD bateram o recorde de todo o ano anterior.
De acordo com a lei, apenas veículos com valor até R$ 70 mil fabricados no Brasil ou nos países ligados ao MERCOSUL conseguem a isenção de IPI e do ICMS. Os carros de valor superior ao teto só contam com o desconto do IPI.
A isenção do IOF é exclusiva para quem tem deficiência física, no entanto, vale ressaltar que, desde 2013, a renúncia foi estendida a parentes que contribuam para a mobilidade daqueles que têm direito à isenção para PCD.
No entanto, a despeito da importância de tais benefícios concedidos aos deficientes e que são diretamente ligados à garantia consagrada no artigo 5º, XV, da nossa Constituição Federal, no dia 13 de agosto do corrente ano, o Governo do Estado de São Paulo, por meio do seu chefe do executivo, enviou à Assembleia Legislativa o projeto de lei 529 de 2020, que estabelece medidas voltadas ao ajuste fiscal e ao equilíbrio das contas públicas.
A justificativa do governo foi de tentar contornar um déficit de cerca de 10 bilhões no caixa de São Paulo causado pela pandemia, no entanto, o texto, mesmo sendo longo, apresentava poucas estimativas, estudos ou dados corroborados.
O projeto de lei de autoria do Governo do Estado, dentre outras coisas, previa a alteração na Lei Estadual Nº 13.296 de 2008, relacionada à isenção de IPVA para Pessoas com Deficiência. O PL excluía o trecho da seguinte forma: “deficientes visuais e mentais como beneficiários da isenção” – e mantinha apenas “Pessoas com Deficiência severas ou profundas que tenham carros adaptados”.
Ou seja, segundo o Governo, a justificativa para tais mudanças seria o déficit na arrecadação causado pela pandemia e, portanto, seria necessário, dentre inúmeras mudanças que envolviam diversas áreas do Estado, retirar a desoneração fiscal da compra de automóveis e produtos para pessoas com deficiência que compram o carro adaptado.
Ora, tal afirmação, por si, só já seria um absurdo, ainda mais considerando que o texto, mesmo sendo longo, apresentava poucas estimativas, estudos ou dados corroborados.
O Projeto de Lei era tão incoerente que diversas entidades da sociedade civil, entre elas, a ABRIDEF – Associação Brasileira da Indústria, Comércio e Serviços de Tecnologia Assistiva, a Comissão de Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo, a ANFAVEA – Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, o Fórum Paulista de Entidades de Pessoas com Deficiência, o SINAFRESP – Sindicato dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado de São Paulo e outras inúmeras entidades e lideranças do segmento PcD se manifestaram contra o projeto.
No entanto, em 14/10/2020, por 48 votos a 36, o Projeto de Lei (PL) 529/2020, de autoria do governo de João Doria foi aprovado com vetos, sancionado e convertido na Lei nº 17.293 de 15 de outubro de 2020, entrando em vigor na data de sua publicação no Diário Oficial do Estado e estabelecendo medidas para ajuste fiscal e equilíbrio das contas públicas do Estado. Dentre as medidas, a lei traz inovações no IPVA e ICMS, cria a transação de créditos tributários e não tributários, entre outras alterações.
No que se refere ao procedimento de reconhecimento de isenção para pessoa com deficiência (PCD) o artigo 21 da nova lei alterou os artigos 13, 13-A. 17, 18 e 27 da Lei Estadual nº 13.296/2008 para, de forma resumida:
Art. 13 – Nova redação do inciso III: A partir de agora, fica concedida isenção de IPVA para um único veículo de propriedade de pessoa com deficiência física que o conduza, desde que especificamente adaptado para o condutor com deficiência.
Art. 13-A: Passou a permitir a concessão de isenção do IPVA à pessoa com deficiência que não conduz o veículo. A isenção será regulamentada pela Secretaria da Fazenda, e o veículo objeto da isenção deverá ser conduzido por condutor autorizado pelo beneficiário ou por seu tutor ou curador, bem como o veículo deverá ser vistoriado anualmente pelo DETRAN/SP.
Se detectada fraude na obtenção da isenção, o valor do imposto será cobrado do beneficiário ou da pessoa que tenha apresentado declaração falsa em qualquer documento utilizado no processo de concessão do benefício.
O proprietário de veículo adquirido anteriormente a publicação da lei e que gozar de isenção de IPVA, para manter a isenção deverá efetuar o recadastramento do veículo junto ao DETRAN/SP, indicando o condutor autorizado e ter o veículo vistoriado. As alterações havidas nos artigos 17, 18 e 27 se referem a adequações de cunho de pagamento e mora do IPVA. No entanto, a Lei nº 17.293/20 de 15 de outubro de 2020 traz no seu bojo uma série de ilegalidades como descreveremos a seguir.
De início, vale lembrar que o público PCD se enquadra em dois grandes seguimentos, o seguimento dos condutores e o dos não-condutores. No seguimento dos condutores, basicamente, a restrição está na exigência de adaptação e customização do veículo e, sobre isso pairam as seguintes dúvidas:
- O câmbio automático e a direção com assistência, seja ela hidráulica ou elétrica, serão consideradas adaptações? Infelizmente, apesar da Lei ainda carecer de regulamentação, já está ocorrendo o indeferimento das adaptações de fábrica, sendo que a exigência que está sendo implantada é a da adaptação e a da customização que o próprio condutor faz no veículo depois de fabricado e com o intuito de adaptá-lo às suas condições.
Portanto, além da exigência da deficiência severa e profunda, a nova lei exige que sejam feitas adaptações para atenderem as restrições que devem constar na CNH especial e que exigem a alteração no pedal, alterações de pomo, alteração no volante, ou seja, alterações que não são feitas de fábrica, assim como serão exigidas as notas fiscais dessas alterações para deferirem a isenção, no caso, do IPVA.
Importante destacar que existe um entendimento bastante robusto no sentido de que câmbio automático e direção com assistência são consideradas adaptações. Por exemplo, uma pessoa que tem a perna esquerda amputada, a ausência de embreagem substituída no carro automático, que é um item de fábrica, supre a necessidade para fins de adaptação do veículo.
Logo, como tal questão ainda não está pacificada, ou seja, não há um entendimento firmado sobre o que é considerado adaptação, a questão é passível de judicialização, em outras palavras, as pessoas que tiverem seus pedidos negados em razão de falta de adaptação que não seja a de fábrica, devem levar o problema ao poder judiciário para que se obtenha uma solução por meio de decisão judicial.
Nota-se, portanto, que o governo paulista, sob o argumento de haver uma necessidade de aumentar a arrecadação fiscal para suprir um suposto déficit orçamentário decorrente dos impactos negativos causados pela pandemia, restringe direitos fundamentais relativos à facilitação de locomoção justamente daqueles que se encontram dentro de um mesmo grupo em que a própria legislação os coloca como vulneráveis, quais sejam, os deficientes físicos.
Se isso não bastasse, conforme matéria da Revista Reação de 20/10/2020, o governo do Estado de São Paulo publicou na mesma data no Diário Oficial do Poder Executivo I, o Decreto nº 65.259/2020 que: “Introduz alterações no Regulamento do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – RICMS e dá outras providências”.
O artigo 1º decreta que: “Passam a vigorar, com a redação que se segue, os dispositivos adiante indicados do artigo 19 do Anexo I do Regulamento do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – RICMS, aprovado pelo Decreto n° 45.490, de 30 de novembro de 2000:”
Dentre outros assuntos tratados no Decreto, prevê o item: “d) seja utilizado uma única vez no período de 4 (quatro) anos, contados da data da aquisição do veículo, ressalvados os casos de destruição completa do veículo ou de seu desaparecimento (Convênio ICMS 50/18);”.
Com isso, as pessoas com deficiência – e ou familiares, que adquiriram veículos 0Km com as isenções concedidas pelas determinações do CONFAZ, devem – obrigatoriamente – permanecer, também no Estado de São Paulo, por 4 anos com o automóvel.[2]
Com relação ao ICMS, a principal ilegalidade que o Decreto nº 65.259/2020 trouxe são as datas retroativas. Basicamente, esse Decreto está aumentando o prazo de troca de veículo com isenção de ICMS por PCD de 2 para 4 anos.
Vale lembrar que já houve uma padronização do Conselho Nacional de Política Fazendária – (CONFAZ) em 2018, que tornou o padrão 4 anos e que foi ratificado em vários Estados, menos no Estado de São Paulo na época. Somente agora em 2020 o governador editou tal Decreto, passando de 2 para 4 anos o período de concessão do ICMS e com data retroativa para 2018 que é a data da padronização do CONFAZ.
Após essa mudança, é natural que surja as seguintes dúvida: Quer dizer que a pessoa com deficiência só poderá obter a isenção do ICMS uma vez a cada 4 anos? E o bloqueio de alienação do veículo, passou de 2 para 4 anos?
Fato é que a Lei ainda depende de regulamentação, no entanto, existem alguns princípios maiores em Direito que proíbem o governador ou o legislador de editarem normas ao seu bel prazer. Em regra, existe o princípio da Irretroatividade tributária, que impede que a nova norma atinja fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da nova Lei, o princípio da Anualidade que prevê que uma norma editada num ano só poderá viger no ano seguinte e também o princípio que fala da Antecipação, ou seja, a norma tem um prazo de vacância, um período de espera para entrar em vigor, não podendo ser de imediato.
O Decreto estipula que ele entra em vigência imediata e que retroage ao ano de 2018, porém, alguns podem dizer que não se trata de uma retroatividade, mas de uma ratificação tardia. Fato é que, na dúvida, não se pode ter um interpretação restritiva, ou seja, não se pode ter uma perda de direitos.
Logo, quem já comprou um carro antes da entrada dessa Lei, que é de 26 de julho de 2020, pode vender daqui dois anos, mas, caso apareça alguma restrição quinquenal ou de 4 (quatro) anos no documento, deve-se levar ao Poder Judiciário, uma vez que, quando da aquisição do veículo, a expectativa de quem o adquiriu era de ficar somente 2 (dois) anos com o carro, logo, não se pode aceitar que o governo, do dia para a noite, mude a regra para 4 (quatro) anos.
Ademais, as mudanças relativas ao ICMS não podem atingir quem já teve o procedimento deferido, quem já está com o pedido na fábrica, quem já está aguardando o carro, pois, caso contrário, será, sem dúvida alguma, uma arbitrariedade, uma ilegalidade passível, até mesmo, de impetração de Mandado de Segurança, já que, num primeiro momento, essas alterações estariam violando princípios maiores.
Importante destacar que tais normas acima mencionadas, não apenas vão de encontro ao direito constitucional de livre locomoção, uma vez que buscam restringir direitos que visam uma maior acessibilidade das pessoas com deficiência na aquisição de um importante meio de transporte, como também contrariam o que a própria Lei Brasileira de Inclusão preceitua.
A Lei Brasileira de Inclusão – LBI, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, é um conjunto de normas destinadas a assegurar e a promover, em igualdade de condições, o exercício dos direitos e liberdades fundamentais por pessoas com deficiência, visando a sua inclusão social e a cidadania.
A referida Lei foi criada a fim de dar efetividade à Convenção Internacional da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados pelo Brasil, em Nova York, no dia 30 de março de 2007, tratando de diversas ferramentas para garantir que todos os direitos das pessoas com deficiência sejam respeitados, e para que possam se defender da exclusão, da discriminação, do preconceito e da ausência de acesso real a todos os setores da sociedade.
A fim de garantir maior efetividade às medidas de acessibilidade, a LBI promoveu a alteração da Lei nº. 8.429/92 para classificar a conduta do agente público que deixa de cumprir a exigência de requisitos de acessibilidade previstos na legislação, como ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública.
As penalidades para este tipo de ato de improbidade administrativa, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, são: ressarcimento integral do dano se houver; perda da função pública; suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos; pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente; e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.
Por fim, podemos concluir que o desrespeito à LBI e à nossa CF está mais do que evidente nos dispositivos legais supra mencionados, no entanto, é importante frisar que nós só conseguiremos fazer valer os nossos direitos nesse país a partir do momento que os cidadãos passarem a exigir que as Leis respeitem os princípios maiores que estão na Constituição Federal e isso só é possível conhecendo os seus direitos a partir de uma cobrança maior, não apenas daqueles que estão no poder, como também dos que pretendem um dia lá chegar e, por fim, com a busca do Poder Judiciário sempre que se sentir lesados, pois é dele o dever de defender os direitos de cada cidadão, promovendo a justiça e resolvendo os conflitos que possam surgir na sociedade, por meio da investigação, apuração, julgamento e punição.
* Edson Constantino Chagas de Queiroz – Advogado, sócio fundador do Viola & Queiroz Advogados, Pós Graduado e especialista em Direito Médico e da Saúde, Pós Graduando em Direito Previdenciário; Membro Efetivo da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB São Paulo. www.violaequeirozadvogados.com.br e redes sociais: @violaequeirozadvogados
[1] https://autopapo.uol.com.br/noticia/guia-definitivo-isencao-para-pcd/
[2] https://revistareacao.com.br/doria-assina-4-anos-para-prazo-de-troca-de-veiculo-com-isencao-de-icms-por-pcd-em-sp/
Fonte https://revistareacao.com.br/a-violacao-do-direito-de-ir-e-vir/
POSTADO POR ANTÔNIO BRITO
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