03/01/2021

Vivenciamos um desmonte nos direitos das pessoas com deficiência em todas as esferas”

Artigo de Mara Gabrilli*

As desigualdades e a vulnerabilidade dos brasileiros com deficiência nunca ficaram tão evidentes como em 2020. A pandemia da covid-19 nos mostrou que tudo que temos feito em termos de política pública para essa população ainda está muito distante do que ainda precisamos fazer.

Essa constatação se tornou mais nítida ainda em meados de março, quando foi decretado o estado de calamidade no Brasil por causa do coronavírus. Pensando nisso, uma das primeiras ações que apresentei no Senado foi um pacote de medidas para aumentar a proteção das pessoas com deficiência durante a pandemia. Segundos estudos divulgados no início do ano, as pessoas com deficiência têm três vezes mais chances de se contaminar.

Por isso, ao longo de todo o ano, seguimos trabalhando com essa e outras pautas para minimizar os efeitos da crise sanitária e econômica que assolou o País. Com o auxílio de uma equipe de assistentes sociais, o Instituto Mara Gabrilli realizou uma pesquisa nacional para conhecer a realidade das pessoas com deficiência durante a pandemia e elencar as principais dificuldades encontradas nesse período. Essas respostas serviram de base para a formulação de propostas legislativas que apresentamos no Senado, seja por projeto de lei ou por ‘indicação’, ferramenta parlamentar de deputados e senadores para fazer uma sugestão ao governo federal.

Foi por meio de uma indicação, junto com o senador Flávio Arns, por exemplo, que sugeri ao ministro da Saúde a inclusão de pessoas com doenças raras, pessoas com deficiência e seus respectivos cuidadores entre as populações-alvo prioritárias da campanha de vacinação contra covid-19 no PNI, o Programa Nacional de Imunizações.

Posso dizer que nesses dez anos em que estou no Congresso Nacional, oito como deputada federal e dois como senadora, muito mais do que propor novos avanços para as pessoas com deficiência, nosso desafio é evitar a perda de direitos. E, em 2020, tivemos que lidar com uma grave ameaça de retrocesso apresentada pelo governo federal, com o decreto que estabelecia a Nova Política de Educação Especial. Em conjunto com o senador Fabiano Contarato, apresentei um projeto de decreto legislativo para suspender esse decreto. Entendemos que a proposta caminha rumo à segregação e não à inclusão, pois possibilita a gestores de escolas regulares, especialmente as particulares, continuarem a negar o acesso e a inclusão de estudantes com deficiência. E isso sob a alegação de que o melhor para os alunos é a educação especial.

Na realidade, não cabe a nenhuma escola selecionar alunos dessa forma. Escolas têm de atender bem a todos que as buscam, precisam receber bem, acolher e trabalhar pelo desenvolvimento saudável desse aluno. Sempre digo que, quando uma escola é boa para quem tem uma deficiência, ela será boa para todo e qualquer aluno. É por esse ideal que a gente luta.

Como sabemos, o Brasil é signatário da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU. Por isso, consultei o alto comissariado para reafirmar o posicionamento da educação inclusiva internacional. Provocados por mim, eles emitiram uma nota com a análise do tema, na qual defendem a qualidade do ensino por meio da educação inclusiva. Encaminhei essa nota ao ministro Dias Toffoli, relator do caso no STF, principalmente pela referida Convenção ter sido recebida com status de emenda constitucional. Em dezembro, numa grande vitória para todos nós, tivemos a decisão do STF, suspendendo o decreto do governo.

Cabe dizer também que, além de tudo, a proposta apresentava um viés capacitista, algo que o governo deveria combater, ao invés de praticar e estimular. O combate ao capacitismo, aliás, foi um tema bastante defendido pela ONU e o próprio Senado realizou uma belíssima campanha para conscientizar a sociedade sobre o que é capacitismo e porque é importante combatê-lo.

Infelizmente, muita gente ainda subestima a capacidade de uma pessoa pela deficiência. O capacitismo, erroneamente, define uma pessoa por sua deficiência, mas a pessoa é muito mais do que impedimentos físicos, sensoriais, intelectuais ou mentais.

Essa discussão vem ocorrendo em um momento muito oportuno, em que estamos vivenciando um desmonte nos direitos das pessoas com deficiência em todas as esferas, seja por desconhecimento ou por perversidade dos nossos gestores. São decisões tomadas com base em capacitismo. Não podemos mais tolerar que isso continue acontecendo.

Por fim, não poderia deixar de falar de um tema bastante discutido ao longo deste ano e que, tenho certeza, estará na pauta nacional pelos próximos anos também: a cannabis medicinal. Hoje, medicamentos e produtos à base de cannabis já estão disponíveis para o brasileiro que pode pagar entre 2 mil e 3 mil reais, mas o pobre ainda não tem acesso.

Para mudar essa realidade, estamos acompanhando de perto as discussões da Comissão Especial na Câmara dos Deputados que analisa o substitutivo do Projeto de Lei n°399/2015, apresentado pelo deputado Luciano Ducci, relator da matéria. O texto, resultado de uma construção coletiva, traz avanços importantes, estabelecendo diretrizes para o cultivo da cannabis em território nacional.

Quando o assunto é cannabis medicinal, posso falar com propriedade, porque também fui contaminada pelo novo coronavírus e não busquei a cloroquina, mas a cannabis medicinal, que me permitiu tratar as fortes sequelas deixadas pelo vírus em meu corpo. Foram três meses de dores e espasmos, com manifestações inesperadas em meu sistema nervoso, perda de memória recente e falhas na voz.

Nossa voz não se calará, não vamos deixar de lutar para que o Brasil caminhe rumo ao desenvolvimento e regulamente o acesso à cannabis medicinal.

Somos 45 milhões de brasileiros com algum tipo de deficiência. O Brasil, assim como qualquer outra nação no mundo, não conseguirá retomar o crescimento e o rumo do desenvolvimento deixando as pessoas mais vulneráveis no esquecimento.

É preciso conscientizar a sociedade e a mídia tem um papel fundamental nessa construção. Nesse ponto, preciso parabenizar o Luiz Alexandre Souza Ventura, jornalista que, com o blog Vencer Limites, faz uma cobertura diária impecável de tudo que acontece de relevante no País, levando a informação para quem mais precisa: as pessoas com deficiência, seus familiares, profissionais da área e nós, representantes do povo. Isso porque o blog virou uma referência no assunto e o gestor público que o acompanha sempre estará por dentro das demandas mais urgentes do universo inclusivo.

A comunicação sempre foi um dos principais pilares de meus mandatos e a imprensa, uma aliada, que estimula de forma saudável a participação da sociedade na vida pública e política. Não por acaso, me enche o peito de orgulho ver a pauta da pessoa com deficiência ganhar cada vez mais espaço nos noticiários. Somos um contingente gigante, que vota, trabalha, consome, paga impostos e luta. Nada mais justo que sairmos do ciclo de invisibilidade e escancararmos o que somos: gente aguerrida que mata um leão por dia para garantir seus direitos.

Aliás, se tem uma palavra que marca o ano de 2020 para os brasileiros com deficiência é resiliência. Definitivamente, 2020 não foi um ano fácil para ninguém, mas para os mais vulneráveis foi um teste de sobrevivência. Resistimos bravamente e nos manteremos assim, incansáveis, trabalhando por aqueles que mais precisam. Os tempos são difíceis, mas são também de esperança. Esse será o nosso combustível para seguir em frente e fazer de 2021 um ano que mire no progresso, sem deixar nenhum brasileiro para trás.

*Mara Gabrilli, de 53 anos, tetraplégica desde 1994 em decorrência de um acidente de carro, é publicitária, psicóloga e senadora pelo PSDB/SP (mandato 2019/2026). Foi secretária municipal da Pessoa com Deficiência de São Paulo, vereadora na Câmara paulistana e deputada federal por dois mandatos consecutivos. Em junho de 2018, foi eleita para um mandato de quatro anos no Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU). Fundou em 1997 o Projeto Próximo Passo, organização não-governamental para a acessibilidade e o desenho universal, pesquisas sobre paralisias e iniciativas de inclusão de atletas com deficiência. Em 2007, a ONG se tornou o Instituto Mara Gabrilli.

Fonte  https://brasil.estadao.com.br/blogs/vencer-limites/vivenciamos-um-desmonte-nos-direitos-das-pessoas-com-deficiencia-em-todas-as-esferas/

Postado por Antônio Brito 

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