Ficou tetraplégico há trinta anos mas não ficou parado. Pesquisou, pediu, protestou, reclamou e conseguiu voltar a ter vida própria. O sistema de apoio meteu-o num lar de idosos, mas conseguiu, para si e para centenas de outros, uma solução que lhe permite fazer a vida na sua própria casa com o apoio de assistentes. Tem saudades de sentir a terra e da sua sexualidade, mas voltou a gerir um restaurante, actividade que tinha antes do acidente. Na abertura contou com a presença do Presidente da República.
O que lhe aconteceu, há trinta anos, depois do acidente?
Durante um ano caminhei para hospitais porque não sentia nenhum membro do corpo. Ainda tentei regressar ao trabalho, mas sentia-me um fardo para os meus colegas.
Quando começou a lutar para deixar de sentir esse peso?
Quando tive acesso à Internet e soube que tinha direitos. Naquela altura não se tentava reabilitar psicologicamente quem ficava nestas condições. Éramos tratados como uns coitadinhos e abandonavam-nos na sociedade. A Internet permitiu-me descobrir que existem leis que defendem pessoas com incapacidades. Embora estejam apenas no papel, já é um ponto de partida.
Como eram os dias antes de ter as condições que tem hoje?
Eram horríveis! Quando não temos mobilidade a nossa vontade é apenas mental e, por isso, vale muito pouco. Depender dos outros é viver numa incerteza muito grande que resultava num desgaste mental enorme. Antigamente tinha medo e vergonha do meu estado, actualmente sei o que sou, respeito-me e consigo ser respeitado.
Onde é que se agarrava para não entrar em desespero?
Às leis e à esperança de que pudessem ser cumpridas. Desloquei-me a muitas entidades para demonstrar a minha indignação, mas até para lutar tinha de pagar. Dou-lhe um exemplo; para ir a Lisboa contar a minha história a um grupo parlamentar, tinha de estar cerca de dois meses a pagar os 250 euros da viagem de táxi. Entretanto arranjei outras estratégias para chamar a atenção.
Fez greve de fome, vigílias, viagens de 180 quilómetros em cadeiras de rodas, e até dentro de uma gaiola esteve, à frente da Assembleia da República.
Sentia que se continuasse a viver naquele estado podia morrer. Fui colocado num lar de idosos sem me perguntarem nada. Não sou contra os lares de idosos, mas com 28 anos era algum velho? Tudo o que fiz, fi-lo com precaução e sempre com o objectivo de conseguir que as pessoas com deficiência possam ter os direitos e deveres que estão na Constituição. A minha persistência fez com que se implementasse um projecto piloto designado “Vida Independente”.
No que consiste o projecto?
Descobri que havia forma de ter assistentes pessoais que podiam ser os braços, as pernas, ou os olhos, dos que vivem com estas dificuldades. O “Vida Independente” abrange cerca de 900 cidadãos, apoiados por cuidadores escolhidos por nós e pagos pela Segurança Social durante 36 meses. É um projecto que sai mais barato ao Estado e já não são as IPSS (Instituições Particulares de Solidariedade Social) a controlarem as nossas vidas.
Que balanço faz?
Podia estar a correr muito melhor. O modelo estava idealizado para uma centena de pessoas e não para cerca de um milhar. Nestas condições há menos horas disponíveis para cada pessoa. No meu caso tenho direito a 18 horas, mas há quem tenha apenas 4 horas. No entanto, vamos acarinhar o projecto e trabalhar em conjunto para melhorá-lo.
Dá-se bem com os suas assistentes pessoais?
Muito bem, muito bem! Os assistentes pessoais não podem ser familiares para não se intrometerem na nossa liberdade. Corro o risco de ser mal-entendido, mas com um assistente pessoal não há essa tentação de dar opiniões. Tem de existir muito respeito entre nós.
O Presidente da República tem sido fundamental na sua luta. Vê nele um amigo?
Sem dúvida! Liga-me regularmente para saber como estou. Contacto semanalmente com muitas entidades e governantes, mas habitualmente assobiam para o lado. Com Marcelo Rebelo de Sousa se lhe enviar um email hoje, durante a madrugada responde-me. É um conforto muito grande saber que este projecto é apoiado pelo Presidente da República.
Inaugurou o restaurante Algaz, na Carregueira, em plena pandemia. O que o motivou?
A causa e as minhas ambições. As IPSS têm de ter condições para dar qualidade de vida aos idosos. Os lucros deste espaço vão todos para o Centro de Apoio Social da Carregueira (CASC).
Como está a ser a experiência?
Muito boa, mas ainda estou a aprender a lidar com alguns assuntos. Quando me conseguia mexer normalmente, e trabalhava em restauração, apagava os fogos todos: lavava o chão, cozinhava, ia fazer uma entrega, entre outras coisas. O facto de não poder fazer isso é um problema que ainda estou a tentar resolver. Enquanto gestor incomoda-me não estar a conseguir cumprir com os objectivos, mas a pandemia não dá tréguas.
Gosta de gerir pessoas?
Todas as equipas com quem trabalhei têm como base o respeito e a confiança. Dizem-me muitas vezes que sou condescendente e não sei ser patrão, mas também não o quero ser. Não sou de gritos nem de escândalos, mas não deixo de garantir que as pessoas assumem as responsabilidades pelos seus erros.
Acumula as funções de técnico social no CASC. Não se sente cansado?
Não, porque estive demasiado tempo encostado e sou um homem que gosta de adrenalina, acção e movimento. Acha melhor estar enfiado num lar de idosos, onde não tenho voz? Nem pensar!
Nunca desistir é um traço de personalidade seu ou surgiu com a deficiência?
Penso que já o tinha, mas só dei conta depois de ter adquirido a deficiência. Sempre fui contra as injustiças e as humilhações, e a palavra “não” faz-me muita comichão; gosto de contrapor e de arranjar alternativas.
As barreiras que existem são mentais ou físicas?
Estão as duas em pé de igualdade. Na primeira vigília que fizemos em frente à Assembleia da República ouvi comentários infelizes de pessoas admiradas por haver deficientes a fumar ou a usar telemóveis. Olhavam-nos como se fossemos uns extraterrestres! São situações que vão demorar muitos anos a ultrapassar.
Sente-se livre?
O meu 25 de Abril aconteceu recentemente com a aprovação do “Vida Independente”. É uma grande vitória saber que tenho alguém que me ajuda a levantar de manhã, que me dá de comer e que me leva à casa de banho. Recentemente comprei uma carrinha adaptada para poder viajar. Sinto que voltei a ter a vida nas minhas mãos!
Tem medo de alguma coisa?
Tenho medo que este projecto não funcione! Receio que os governantes de amanhã se interessem mais pelo dinheiro do que pela vida das pessoas com deficiência.
Do que sente falta?
Tenho saudades da minha sexualidade e de poder viajar sem restrições; de bater a porta quando estou a aturar gente sem importância; de sentir a terra e de dar festas aos meus cães.
Tem passatempos?
Gosto de amar e de sentir amor; de olhar nos olhos das pessoas sem pudor; da natureza e das coisas simples; gosto de ajudar ou outros; e quando estão dias de sol, gosto de ir com a minha cadeira para a charneca.
A cadeira de rodas é a sua melhor amiga?
Não, principalmente porque falha-me muitas vezes (risos). Temos uma relação de muito respeito; trato-a bem e ela tem obrigação de me levar para onde quero.
Que sonho comanda a sua vida?
Fazer tudo o que estiver ao meu alcance para não acabar num lar de idosos. Foi das experiências mais assustadoras e traumáticas.
Uma vontade indomável de ser independente
Eduardo Jorge ficou tetraplégico aos vinte e oito anos, na sequência de um acidente de automóvel. Um despiste na Estrada Nacional 118, na zona de Alvega, no dia 20 de Fevereiro de 1991. Na altura era gerente do restaurante A Nora, em Concavada, concelho de Abrantes. A 4 de Junho do ano passado, voltou a exercer a sua actividade profissional, à frente do restaurante O Algaz, do Centro de Apoio Social da Carregueira, no concelho da Chamusca, onde trabalha como técnico social.
Nos trinta anos que passaram entre o acidente e o regresso ao cargo de gerente de restaurante, Eduardo Jorge construiu uma nova vida. Utilizou a Internet, quando a ela teve acesso, para se informar sobre os seus direitos. Depois lutou para fazer sair do papel as leis que existiam e para conseguir criar melhores condições para ele e para outros cidadãos nas mesmas condições.
Em 2014 viajou durante 180 quilómetros, numa cadeira de rodas, entre Concavada, em Abrantes, e o Ministério da Solidariedade Social em Lisboa, para chamar a atenção para sua situação. Em Dezembro de 2018 ficou em frente à Assembleia da República, dentro de uma gaiola, com o mesmo objectivo. Conseguiu ter a seu lado o Presidente da República.
Em conjunto com outros cidadãos na mesma situação, conseguiu que fosse implementado o projecto “Vida Independente”, sistema existente em muitos países europeus e nos Estados Unidos. Marcelo Rebelo de Sousa visitou-o em casa depois do seu regresso à mesma, inserido naquele projecto que abrange actualmente cerca de 900 cidadãos que permanecem nas suas casas, apoiados por cuidadores escolhidos por si e pagos pela Segurança Social durante 36 meses.
Fonte https://omirante.pt/omirante/2021-03-04-Fui-colocado-num-lar-de-idosos-aos-vinte-e-oito-anos-e-senti-que-se-nao-fizesse-nada-ia-morrer
Postado por Antônio Brito
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