08/03/2021

Catarinense nascida com deficiência desafia velocistas mais rápidas do país e briga por vaga olímpica

O ritual é o mesmo para todos os velocistas no atletismo. Pequenos saltos para relaxar a musculatura, a aproximação ao bloco de partida, o ato de se ajoelhar para aferir com precisão a distância entre tronco e mãos, entre pés e joelhos, a largada simulada para encaixar os últimos detalhes. Mas Anny Caroline de Bassi, de 23 anos, escapa à mesmice da multidão.

Anny de Bassi no Troféu Brasil de Atletismo — Foto: Wagner Carmo/CBAt

A catarinense nasceu com uma condição rara chamada Síndrome de Poland. Quando ainda era um embrião na barriga da mãe, o fluxo de sangue para as artérias que ficam embaixo da clavícula acabou interrompido. E, em função disso, ela se viu, ainda bebê, sem um músculo da região do tórax e com uma má formação no braço esquerdo.

Anny de Bassi sonha com vaga na equipe de atletismo do Brasil nos Jogos Olímpicos de Tóquio

E justamente naquela hora do ritual pré-largada a diferença se acentua. A Anny tem só um dedinho da mão esquerda, e precisa de um apoio - no caso, um peso metálico, como aqueles usados para segurar portas - para partir do bloco. Em uma prova repleta de minúcias como os 100m, é de impressionar que consiga registrar os feitos que tem obtido.

Apesar da condição, Anny está entre as mulheres mais rápidas do Brasil há três temporadas. No Troféu Brasil de Atletismo, disputado no fim do ano passado no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa, no Ibirapuera, zona sul de São Paulo, foi a quarta colocada nos 200m e sexta nos 100m.

Anny de Bassi na pista onde treina, em Balneário Camboriú — Foto: Renato Soder
Anny de Bassi na pista onde treina, em Balneário Camboriú — Foto: Renato Soder

A regularidade na elite do atletismo brasileiro a deixa mais perto de sonhar com uma façanha: tentar classificação para o revezamento 4x100m feminino do país que irá aos Jogos Olímpicos de Tóquio. As cinco mais velozes do ranking nacional comporão a equipe e Anny, cuja melhor marca é 11s52, está no páreo. A definição do time será no primeiro semestre de 2021.

- Eu e meu treinador [Diego Gamboa] consideramos as chances muito boas. Eu venho melhorando muito do ano passado para esse ano. Em 2020, infelizmente, a gente quase não competiu. Estamos conseguindo ver evolução. E o que eu preciso fazer para ir a Tóquio é realmente melhorar minha marca. Eu preciso melhorar o meu tempo para conseguir, e acho que é possível - afirmou.

Anny começou a correr há pouco mais de dez anos, descoberta por uma professora, mas somente em 2012 decidiu tentar levar a vida no esporte. Devido à sua condição de nascimento, postulou o esporte paralímpico. Até conseguiu ser classificada na natação paralímpica, mas para o atletismo, que era de fato seu objetivo, foi barrada.

Motivo: a deficiência da catarinense não se enquadra nos critérios. Para se tornar elegível entre atletas com deficiência, o braço esquerdo dela, comprometido pela má formação, teria de ser menor do que a distância entre o ombro e o punho do braço direito.

Anny treina com o peso para apoiar a mão esquerda — Foto: Renato Soder
Anny treina com o peso para apoiar a mão esquerda — Foto: Renato Soder

Impedida de seguir no atletismo paralímpico, ela não desistiu e se estabeleceu no atletismo convencional. Desde 2017 virou figura cativa em finais das provas de velocidades nos torneios do país e, em 2019, estreou pela seleção brasileira; no Campeonato Sul-Americano de Lima, no Peru, abriu o revezamento 4x100m que levou a medalha de ouro.

A trajetória bem-sucedida atualmente contrasta com o início, quando teve de lidar com preconceito e "olhares" de outras competidoras.

- Eu já senti [preconceito], por parte dos atletas. Hoje em dia, quase não sinto mais, mas no início, eu sentia os olhares até durante a prova, das próprias pessoas que estavam competindo comigo. Me incomodava um pouco, mas eu sabia lidar até bem com isso. Teve uma vez que eu fiquei bem chateada, que me falaram algumas coisas. Não falaram diretamente para mim, mas para uma amiga minha assim: "vocês vão perder, aquela menina com uma mão vai correr com vocês." A gente sabia que talvez eu pudesse ter uma pequena desvantagem em questão de equilíbrio, mas nunca vimos como um obstáculo. Nunca achei que fosse me impedir - comentou.

Para se tornar competitiva, Anny precisou fazer adaptações e minimizar as desvantagens técnicas impostas por sua condição física. Ela usa uma luva para fazer levantamento de peso, empurra moto para ajustar a coordenação e fortalecimento abdominal. O que transparece mais, porém, é o peso de porta que leva a todos os treinos e competições para equilibrar o corpo na largada.

- Antes, eu não usava. Então a minha largada era muito ruim, porque eu saía desequilibrada com o ombro e o braço. Como a prova de 100 metros é uma prova muito rápida, você não pode perder tempo em nenhuma das partes. E quando a gente colocou esse bloquinho, eu melhorei muito o meu tempo - explicou.

Thiago Lourenço, coordenador do departamento de ciência do CPB (Comitê Paralímpico Brasileiro), fez uma comparação entre a largada dos 100m com a da Fórmula 1 para explicar o quanto a condição poderia prejudicar Anny.

- Eu costumo sempre fazer o paralelo com a largada de um Fórmula 1. Se a gente colocar um carro de Fórmula 1 com um pneu descalibrado, ele vai perder a sua trajetória retilínea, que é o que a gente precisa pra ganhar o máximo de velocidade possível. No caso dela, seria a mesma coisa. Se ela não tivesse esse auxílio, ela teria uma trajetória de corrida totalmente diferente da necessária, que seria a retilínea - disse.

A história de esforço ganha ainda mais peso porque Anny treina fora do eixo Rio-São Paulo, onde se concentra a maior parte dos grandes nomes do atletismo brasileiro, e longe de condições ideais. O local onde faz suas atividades diariamente é uma pista de carvão.

- Eu quero que lembrem de mim também como atleta. Não quero que lembrem de mim pela minha deficiência. Quero que lembrem de mim como uma atleta que teve bons resultados, que levou o nome do Brasil em competições, e uma pessoa que traz alegria - disse.

Em 2021, ela terá alguns torneios para tentar melhorar seu índice e garantir vaga na equipe brasileira que vai a Tóquio. Entre eles, o Troféu Brasil, ainda sem data definida.

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