08/04/2020

Jornalista autista cria protocolo para expor suspeitos de abuso sexual



“Faço do jornalismo um híbrido de instrumento de comunicação e arma na guerra de restauração social”, declara Giulio Ferrari. O jornalista investigativo e autista é criador de um protocolo que identifica possíveis abusadores em série responsável pela abertura da investigação de 15 suspeitos no Brasil e nos Estados Unidos.

‘IDVICS, nome dado ao protocolo, foi idealizado a partir de uma experiência pessoal vivida por Giulio anos atrás em Curitiba (PR). Ainda adolescente, ele conta ter sofrido abuso sexual por parte do médium Maury Rodrigues da Cruz durante dois anos. O caso foi divulgado em uma reportagem do ‘Fantástico’, em outubro de 2018.
“Dos 15 aos 17 anos, fui para o centro [Sociedade Brasileira de Estudos Espíritas – local onde os abusos ocorreram] para tratar a depressão. Como minha mãe era espírita, ela me levou para lá, invés de procurar um psicólogo ou psiquiatra e acabou se tornando braço direito dele [Maury]. Ela trabalhou lá por mais de 20 anos sem saber dos abusos”, lembra.

Acusações contra Maury Rodrigues da Cruz

Em 2018, o médium Maury Rodrigues da Cruz se tornou réu pelos crimes de estelionato e violação sexual mediante fraude. Ele foi o primeiro abusador em série classificado pelo ‘IDVICS’. De acordo com a reportagem veiculada pela Rede Globo na época, além de Giulio, haviam pelo menos outras 23 denúncias contra o religioso.
Segundo as vítimas, os abusos aconteciam em uma sala reservada. Apesar de ter passado pela situação ainda durante a adolescência, Giulio só revelou o fato para a mãe 20 anos mais tarde, quando já estava casado e morando no Texas.
A partir daí, a mãe dele entrou em contato com outros jovens que frequentavam o centro espírito na mesma época e encontrou uma série de outros relatos semelhantes. “Quando eu liguei para o sexto e ele confirmou, pra mim não tinha nenhuma dúvida mais”, declarou ela ao Fantástico.
A reportagem também ouviu o médium, que negou todas as acusações. Além do Centro Espírita, Maury ainda administra uma creche e uma faculdade na cidade. Em setembro do ano passado, o Tribunal de Justiça acatou um recurso do médium contra um casal por difamação. Ele ainda aguarda o julgamento do caso em liberdade.

jornalista e autista: Giulio posa com um parque ao fun e segura capa da revista Veja com manchete 'Livrai-nos do mal'
Visibilidade dos casos fez com que Giulio assinasse reportagens na Veja (foto: arquivo pessoal/ Giulio Ferrari).

Com a visibilidade do caso e identificação de outras vítimas e possíveis abusadores em série, Giulio auxiliou na construção de reportagens para veículos como ‘Veja‘, e ‘IstoÉ‘. Além disso, ele chegou a atuar como repórter em casos de outros suspeitos de abuso sexual, como o médium João de Deus, preso em dezembro de 2018 por crimes sexuais contra 4 mulheres.
Atualmente, o jornalista tem uma base de dados com informações para investigar mais de 100 suspeitos que ocupam cargos como padres, médiuns e pastores. Para os casos que envolvem a igreja católica, ele fez uma adaptação no protocolo. “É como trabalhar para um governo a parte. Estou sofrendo três processos da igreja, mas tudo faz parte”, diz.

IDVICS

A ideia para o ‘IDVICS surgiu quando Giulio sofreu um acidente e ficou acamado por dois meses. Nesta época, começou a estudar perfis psicológicos e conversar com amigos que haviam atuado como agentes na Central Intelligence Agency (CIA) e da Federal Bureau of Investigation (FBI).
“Comecei a desconstruir meu abuso. Como autista, tenho memória filmográfica. Antes, eu voltava no abuso e passava mal. Mas, dessa vez não voltei como vítima, voltei como investigador e comecei a sacar todo modus operandi dele. Consegui, através daqueles livros e de conversas com especialistas, ver que muitos desses caras caem dentro de um mesmo perfil psicológico – é o perfil de um psicopata de tríade obscura. Esse tipo de psicopata é muito previsível. Então eu pude criar um protocolo científico”, explica.

Etapas de classificação

De acordo com Giulio, para ser efetivo, o protocolo precisa passar por algumas etapas: descobrir o (ou os) modus operandi do suspeito; traçar um perfil psicológico e investigar a infância dele são algumas delas. Além disso, o jornalista afirma que é necessário que o suspeito seja considerado um psicopata da tríade obscura – quando ele é diagnosticado como psicopata, narcisista e maquiavélico.
Outra etapa importante é localizar as possíveis vítimas de um dos suspeitos e entrar em contato com elas. Conforme Giulio, uma das partes mais complicadas é definir se aquela é ou não uma falsa vítima, o que é feito por videoconferência ou pessoalmente. Geralmente, as primeiras vítimas surgem ainda no primeiro ano em que eles denunciam alguém.
“Já peguei falsas vítimas e meu trabalho depende da verdade. Se eu defendo uma falsa vítima, todo resto perde o valor. Fazemos leitura de microexpressões faciais, interpretação da vida da pessoa. Isso é minoria, mas existe e conseguimos definir desse jeito”, conta.


Antes de classificar vítimas, protocolo precisa descobrir se os relatos são reais (foto: arquivo pessoal/ Giulio Ferrari).

Tendo estas informações, o próximo passo é reunir elementos para a denúncia que será feita ao Ministério Público. Nesta fase, ele afirma que ocorre o primeiro passo para desconstrução da imagem dos suspeitos.
“Desconstruir o que tem de maior e mais frágil neles: a imagem e o ego. Esses caras escolhem o lugar que eles ocupam. Nenhum padre vira pedófilo, pedófilo vira padre. Da mesma maneira, nenhum espírita, nenhum médium vira pedófilo. O pedófilo escolheu fazer aquilo”, afirma.
Uma das missões é não deixar que aquele caso caia no esquecimento público, ao menos até que o julgamento chegue à segunda instância. Pois o apoio popular é essencial para a fase da condenação. “João de Deus é o maior estuprador em série da nossa modernidade, e ele vai ficar em casa, como se tivesse sido pego por dirigir bebendo”, desabafa.

Jornalista e autista

“Libertador”. É assim que Giulio define a sensação de receber o diagnóstico tardio de autismo aos 33 anos. O parecer médico foi concluído depois de um estudo de 6 meses em um centro dos EUA.
“O autista se sente solitário a vida toda, mesmo que esteja acompanhado de muita gente. A solidão de sentir que você é o único no planeta que pensa daquela maneira ou que está vivendo daquela maneira é horrível. Eu sofri de solidão muitos anos. Até ali. Ali que eu comecei a entender que eu não era sozinho, que tinham outros”, diz.
Antes, porém, ele havia sido diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDH) e Q.I. alto durante a infância e adolescência.
Giulio foi diagnosticado com TDH durante a infância (arquivo pessoal/ Giulio Ferrari).

Após descobrir que era autista, Giulio resolveu começar a falar abertamente sobre o tema, como forma de conscientizar os parentes e amigos próximos. Hoje, ele palestra em escolas e eventos, nos quais busca desconstruir o uso pejorativo da palavra e alguns comentários impensados direcionados à maioria dos autistas leves.
“Eu também não gosto quando a pessoa chega pra mim e diz: pô, mas você nem parece autista. Dá vontade de responder: pô, mas você também não parece bobo e olha o comentário que você fez” [risos]
“Ela não sabe como você sofreu. Como é difícil estar na frente dela conversando. No final do dia, dói ter ficado com aquele sorriso estampado na cara o dia inteiro falando com pessoas. A pessoa que é extrovertida, quanto mais ela conversa, mais ela vai ficando com energia. Pra mim, vai me tirando energia. É uma dificuldade muito grande”, acrescenta.

Preconceito e exclusão

A filha de Giulio também recebeu o diagnóstico de autismo. Ao lado dela, o jornalista autista conta ter vivido momentos de preconceito e exclusão que jamais imaginaria. Como exemplo, destaca o fato da filha não ser convidada para a festa de aniversário de uma amiga. “Aquilo me matou. Eu já tinha visto na TV pessoas falando que os filhos não são convidados para festas, e pensava: isso não pode acontecer. Mas acontece, e é muito pior do que quando eu não era convidado”, desabafa. 
Inconformado com a situação, ele escreveu um texto que publicou em suas redes sociais e fez com que os pais da menina repensassem a situação e convidassem Julia para a festa. Além disso, recentemente teve o autismo omitido durante uma reportagem produzida por outro jornalista. Situação que o desagradou.
Para o jornalista, esses momentos enfatizam o desconhecimento e a falta de compreensão das pessoas com relação àqueles que estão no espectro autista. “As pessoas não compreendem as empatia dos autistas. Nós somos muito mais empáticos, lógicos e diretos. Se o mundo fosse feito só de autistas, seria mais fácil viver”, conclui.
Fonte  http://olharesdoautismo.com.br/2020/04/07/jornalista-autista-protocolo/
Postado por Antônio Brito 

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