OPINIÃO
- * Por Rafael Anselmo
Em 21 de outubro, o governo federal publicou o decreto nº 12.686/2025, que institui a nova Política Nacional de Educação Especial Inclusiva (PNEE Inclusiva) e criou a respectiva Rede Nacional de Educação Especial Inclusiva. A iniciativa visa o reforço da inclusão escolar de alunos com deficiência, transtorno do espectro autista (TEA) e altas habilidades, garantindo o direito à educação “sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades.” Desde então, setores da educação especial, famílias, especialistas e entidades divergem e debatem sobre os impactos jurídicos, pedagógicos e políticos da medida.
Mas há um consenso de que o sucesso – ou fracasso – do decreto será determinado na prática, dentro das escolas. Três aspectos técnicos da nova política se destacam pela influência direta no cotidiano escolar: a exigência de formação mínima dos profissionais, a eliminação do laudo médico como critério de atendimento e a articulação do atendimento educacional especializado (AEE) com a sala de aula comum. Cada um representa avanços importantes, mas também traz desafios operacionais significativos.
1. Formação mínima de profissionais
O decreto estabeleceu que professores do AEE devem ter formação docente inicial e, preferencialmente, especialização em educação especial inclusiva, com carga mínima adicional de 80 horas. Da mesma forma, definiu que o profissional de apoio escolar – aquele auxiliar que assiste o aluno em atividades de locomoção, cuidados pessoais e comunicação – deve ter escolaridade de nível médio e treinamento específico de pelo menos 80 horas. Essa padronização é vista como um ganho de qualidade: em muitos lugares, monitores e auxiliares eram contratados sem nenhuma qualificação específica; agora há um piso formativo nacional. Com profissionais mais capacitados, espera-se melhor atendimento às necessidades especiais e maior apoio aos professores regentes em sala.
No entanto, há desafios imediatos. Será preciso treinar ou contratar milhares de professores e apoiadores para atender à demanda crescente de alunos incluídos. Municípios relatam dificuldade em encontrar docentes especializados, sobretudo no interior. O Ministério da Educação (MEC) afirmou que dará apoio técnico e financeiro para formação continuada de professores, em colaboração com estados e municípios. Ainda assim, o curto prazo é preocupante – especialistas apontam que as 80 horas previstas podem ser insuficientes diante da complexidade de alguns casos. Assim, defende-se que essa carga horária seja considerada como o mínimo inicial, seguido de formação continuada aprofundada.
Além disso, professores da classe comum também precisam de formação em educação inclusiva, já que eles são os responsáveis diretos pelo ensino nas turmas diversas – e o decreto indica a transversalidade da educação especial, ou seja, todos os docentes devem estar preparados para a diversidade em sala. A implementação, portanto, exigirá um grande esforço de capacitação em larga escala, sob pena de a política falhar por falta de pessoal qualificado. Em contrapartida, se bem executado, esse investimento em formação pode elevar o patamar da educação inclusiva no Brasil, profissionalizando a área e valorizando competências especializadas dentro da escola comum.
2. Eliminação do laudo médico como requisito
Como o decreto proíbe que escolas condicionem a oferta do AEE ou do profissional de apoio à apresentação de laudo médico ou diagnóstico do aluno, ganha-se agilidade e abrangência. A partir de agora, basta a avaliação pedagógica indicar que o estudante tem alguma necessidade educacional especial para ele ter direito a atendimento especializado. Isso elimina atrasos burocráticos – antes, famílias levavam meses ou anos em filas de SUS para obter um laudo de TEA ou deficiência intelectual, por exemplo, período em que a criança frequentemente ficava sem apoio na escola. A partir de agora, a escola deve prover os recursos educacionais necessários independentemente de laudo, “sem exigir relatório de profissional de saúde”. Tecnicamente, isso fortalece o protagonismo da avaliação educacional (professores e equipe multiprofissional da educação) na identificação das necessidades dos alunos.
Entretanto, também surge um desafio: como garantir equidade na identificação de quem recebe AEE ou apoio sem um diagnóstico formal? É preciso evitar tanto exclusões indevidas (alunos que precisam de ajuda mas não recebem por falta de percepção da escola) quanto ofertas indiscriminadas (alunos sem necessidade real ocupando vagas de atendimento). A solução apontada está na elaboração criteriosa do Plano de Atendimento Educacional Especializado (PAEE) e no uso de avaliações educacionais especializadas. A Rede Nacional de Educação Especial Inclusiva deve auxiliar nisso, compartilhando protocolos de avaliação e boas práticas. Além disso, a articulação intersetorial incentivada – educação em diálogo com saúde e assistência social – poderá ajudar as escolas a obter orientações técnicas sobre casos mais complexos, mesmo sem um laudo formal.
Tecnicamente, a retirada do laudo pode ser uma faca de dois gumes: por um lado, elimina uma barreira de acesso e amplia o público atendido – incluindo, por exemplo, estudantes com transtornos de aprendizagem, como dislexia ou TDAH, que muitas vezes não tinham laudo e ficavam sem apoio; por outro, exige melhor preparo das equipes escolares para avaliar necessidades educacionais especiais com precisão. Com formação e ferramentas adequadas, essa mudança pode tornar o sistema mais inclusivo e proativo, mas sem elas pode gerar confusão inicial até que se estabeleçam novos protocolos.
3. Articulação do AEE com a sala comum e currículo
Por fim, a efetividade da inclusão depende de como o ensino regular e o atendimento especializado se conectam. O decreto trouxe instruções claras de que o AEE deve estar integrado ao projeto pedagógico das escolas e alinhado ao trabalho do professor da turma. Na prática, isso requer tempo e planejamento conjunto: professores de AEE precisam conversar periodicamente com os professores do aluno na sala comum, para trocar informações, planejar adaptações e acompanhar o progresso em cada componente curricular. Exige também registro sistemático – daí a importância do PAEE como documento vivo, onde constam as estratégias, recursos de acessibilidade e metas traçadas para o aluno. Implementar essa articulação enfrentará desafios como: garantir horários de coordenação entre profissionais, superar eventuais resistências de professores regentes que não foram formados nessa cultura colaborativa, e prover materiais e tecnologias assistivas para que as adaptações planejadas sejam viáveis.
O decreto cita explicitamente a garantia de acessibilidade e desenvolvimento de tecnologias assistivas como princípio da política, o que sugere investimentos nessa seara. Um ponto polêmico é a determinação de que o AEE ocorra preferencialmente no contraturno. Isso significa que o aluno terá sua aula regular, e em outro turno (antes ou depois) irá para a sala de recursos ou centro especializado receber o atendimento extra. Essa separação de turnos é pensada para não retirar o aluno da aula comum, garantindo participação integral no horário regular com seus colegas. Contudo, algumas escolas e famílias atentam para possíveis dificuldades: em áreas rurais, por exemplo, o transporte escolar raramente contempla duas viagens no dia; famílias pobres podem não conseguir levar a criança duas vezes à escola; alunos podem se cansar com a jornada dupla. Alternativas como ofertar o AEE em alguns períodos dentro do horário escolar podem ser consideradas em certos contextos, desde que não conflitem com as disciplinas essenciais – essa é uma questão a ser resolvida localmente, mantendo o espírito de não segregar o aluno da convivência cotidiana com a turma.
Tecnicamente, a articulação do AEE também envolve trabalho em rede. O decreto criou uma estrutura de governança nacional para a educação inclusiva, reunindo União, estados, Distrito Federal e municípios. Essa rede nacional deverá, entre outras funções, “fortalecer os serviços de apoio técnico e produção de materiais acessíveis; aperfeiçoar indicadores e o monitoramento da educação inclusiva; e produzir e difundir conhecimento sobre práticas educacionais inclusivas”. Ou seja, espera-se que boas práticas pedagógicas inclusivas sejam identificadas e replicadas, o que já acontece com sucesso em algumas partes do país. Do ponto de vista escolar, essa articulação pode transformar a cultura da escola, promovendo colaboração e inovação pedagógica. Porém, se for mal conduzida, corre-se o risco de o AEE ficar isolado (como um “recurso” que poucos utilizam) ou, no extremo oposto, de sobrecarregar alunos e professores com atividades desconectadas. O acompanhamento sistemático prometido pelo MEC – inclusive monitorando a frequência escolar de alunos que recebem Benefício de Prestação Continuada (BPC), em parceria com Saúde e Assistência Social – será fundamental para identificar falhas de implementação precocemente e corrigi-las.

* Rafael Anselmo é CEO e fundador da Vínculo, plataforma educacional baseada em inteligência artificial voltada ao acompanhamento de alunos com deficiência, TEA, transtornos de aprendizagem e outras necessidades educacionais especiais. É formado em mecatrônica pela FMU com especialização em administração de empresas pela PUC.
Fonte https://diariopcd.com.br/a-implementacao-da-politica-nacional-de-educacao-especial-inclusiva-e-seu-impacto-nas-escolas/
Postado Pôr Antônio Brito





