OPINIÃO
- * Por Igor Lima
A violência contra crianças com deficiência em creches é uma das mais graves violações de direitos humanos no Brasil. Apesar de a Constituição Federal (art. 227), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) garantirem proteção integral, dignidade, inclusão e segurança, a realidade mostra que muitas crianças ainda enfrentam agressões físicas, abuso psicológico, negligência, abandono e discriminação dentro de ambientes que deveriam promover cuidado, desenvolvimento e afeto.
1. A infância como etapa fundamental
A primeira infância é o período mais sensível do desenvolvimento
humano. É quando se estruturam as bases neurológicas, emocionais e
sociais que irão acompanhar a pessoa por toda a vida.
Para crianças
com deficiência, esse período exige atenção redobrada: estimulação
adequada, segurança, vínculos afetivos e inclusão. Por isso, qualquer
forma de violência ou negligência adquirida nas creches pode gerar
impactos profundos, afetando autonomia, autoestima e desenvolvimento
global.
2. As múltiplas formas de violência institucional
A violência contra crianças com deficiência em creches assume diferentes formas:
- violência física: empurrões, contenções inadequadas, força excessiva em rotinas de higiene ou alimentação;
- violência psicológica: gritos, humilhações, ameaças, isolamento, comparação degradante;
- negligência: falta de acompanhamento individualizado, higiene inadequada, falhas na supervisão, longos períodos de imobilização;
- violência estrutural: ausência de profissionais qualificados, superlotação, ambientes não acessíveis e falta de protocolos;
- capacitismo: práticas discriminatórias que tratam a criança como um “problema”, reduzindo seu direito à aprendizagem e convivência.
Casos reais demonstram a gravidade desse cenário. Em novembro de 2025, diretora e funcionárias de uma creche na Zona Norte do Rio de Janeiro foram condenadas por maus-tratos contra um menino com paralisia cerebral, e a Polícia Civil passou a investigar outros episódios envolvendo a mesma unidade. O fato revela que muitas situações de violência não são incidentes isolados, mas indícios de um padrão institucional falho e repetido, que aprofunda a vulnerabilidade de crianças com deficiência.
Crianças com deficiência intelectual, TEA, paralisia cerebral, deficiências múltiplas e limitações comunicacionais tornam-se especialmente vulneráveis, pois nem sempre conseguem relatar o abuso ou demonstrar claramente o sofrimento.
3. Olhar social: mães solo, trabalho e a luta por cuidado digno
A discussão sobre violência em creches não pode ser dissociada da realidade social das famílias brasileiras – especialmente das mães solo, que representam parte significativa das responsáveis por crianças com deficiência.
Essas
mulheres enfrentam jornadas duplas ou triplas, com pouca rede de apoio,
baixa mobilidade social e intensa sobrecarga emocional. Para muitas
delas, a creche é o único espaço possível para garantir trabalho, renda e sobrevivência.
Quando a creche falha, a consequência é devastadora:
- a mãe perde o emprego;
- a família perde estabilidade;
- a criança perde proteção;
- o ciclo de pobreza e exclusão se intensifica.
Portanto, discutir violência em creches é discutir justiça social, direitos fundamentais e responsabilidade coletiva.
A creche não é “favor”: é política pública essencial para a igualdade de oportunidades.
O Brasil possui marcos legais sólidos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), que determinam a proteção integral e o atendimento prioritário da pessoa com deficiência. Mas entre o que está na lei e o que ocorre na prática existe um abismo. Muitas creches não oferecem formação continuada, práticas de educação inclusiva, protocolos de prevenção à violência ou equipes interdisciplinares treinadas para lidar com as especificidades do desenvolvimento infantil atípico.
4. Falta de preparo e qualificação dos profissionais
Grande parte dos episódios de violência decorre não apenas de maldade individual, mas de:
- falta de formação sobre deficiência, neurodiversidade e primeira infância;
- ausência de cuidadores suficientes;
- turmas superlotadas;
- inexistência de apoio multiprofissional;
- falta de políticas de capacitação.
Profissionais que cuidam de crianças com deficiência precisam ser preparados em:
- comunicação alternativa;
- manejo de comportamentos;
- acolhimento emocional;
- inclusão e acessibilidade;
- direitos humanos e prevenção de violência.
A ausência desse preparo gera insegurança, medo, estresse e reações violentas, reproduzindo o capacitismo estrutural e naturalizando a exclusão.
É urgente repensar o modelo de formação para educadores, investir na construção de ambientes inclusivos e acolhedores, e ampliar a fiscalização para identificar sinais de negligência ou abuso. A creche deve ser espaço de afeto, segurança e desenvolvimento, e não um local onde crianças são silenciadas, humilhadas ou violentadas. A sociedade precisa reconhecer que proteger a infância com deficiência é proteger o futuro — e que qualquer forma de violência contra ela é um ataque direto aos direitos humanos mais básicos
5. Responsabilidades jurídicas e institucionais
Creches públicas e privadas têm responsabilidade objetiva pelos danos causados às crianças (art. 37, §6º, CF).
A violência pode configurar:
- maus-tratos;
- lesão corporal majorada;
- abandono;
- tortura (Lei 9.455/97);
- crime de discriminação contra pessoa com deficiência (art. 88 da LBI).
Há ainda responsabilização administrativa, podendo resultar em multas, suspensão de atividades, investigação e responsabilização de gestores.
O Sistema de Garantia de Direitos — Ministério Público, Conselhos Tutelares, Defensorias — deve atuar de forma integrada para prevenir, fiscalizar e responder a qualquer violação.
É fundamental que famílias e responsáveis estejam atentos a sinais de violência, especialmente quando a criança tem deficiência e pode apresentar dificuldades de comunicação. Mudanças bruscas de comportamento, medo de ir à creche, regressão no desenvolvimento, recusa em interagir com determinados adultos, ferimentos recorrentes ou explicações inconsistentes devem ser encarados como sinais de alerta.
Diante de qualquer suspeita, a denúncia é um dever de proteção, não apenas um direito. O Conselho Tutelar, o Ministério Público e as Delegacias de Proteção à Criança e ao Adolescente são órgãos preparados para acolher e investigar casos, garantindo sigilo e segurança. O Ministério Público, em especial, atua para responsabilizar instituições e agentes que violam direitos, fiscaliza políticas públicas e pode instaurar procedimentos imediatos quando há risco à integridade da criança.
Silenciar é perpetuar ciclos de violência. Denunciar salva vidas e impede que outros casos ocorram. A proteção da infância — especialmente da infância com deficiência — é uma responsabilidade compartilhada entre família, sociedade e Estado, e cada gesto de vigilância e denúncia contribui para ambientes de cuidado mais seguros, humanos e inclusivos.
6. Caminhos para prevenção e transformação
Garantir proteção às crianças exige ação contínua e articulada:
- Investimento em formação profissional obrigatória, com foco em inclusão, não violência e cuidado sensível.
- Fiscalização permanente das creches, com protocolos claros de prevenção, fluxos de denúncia e transparência com as famílias.
- Apoio às mães solo e famílias vulneráveis, com políticas integradas de assistência, trabalho e educação.
- Inclusão real e não apenas formal, garantindo mediadores, cuidadores, acessibilidade, turmas adequadas e acompanhamento multiprofissional.
- Mudança cultural, enfrentando o capacitismo e reconhecendo o valor da infância e o potencial de todas as crianças.
7. Conclusão
A violência contra crianças com deficiência em creches não é um
problema individual: é resultado de estruturas sociais frágeis, falta de
políticas públicas, capacitismo e ausência de apoio às famílias.
Proteger
essas crianças significa garantir o futuro do país, combater
desigualdades e afirmar que nenhuma criança é descartável ou invisível.
A creche deve ser espaço de cuidado, inclusão e desenvolvimento pleno — especialmente para aquelas que mais precisam. Investir na infância, apoiar as famílias e capacitar profissionais não é apenas política pública: é compromisso ético, constitucional e humano com uma sociedade verdadeiramente inclusiva.

- Igor Lima é advogado (OAB/RJ), especialista em Direitos Humanos e sustentabilidade, e pessoa com deficiência. Coordenador da coletânea jurídica “Deficiência e os Desafios para uma Sociedade Inclusiva”, citada no STJ, TST, STF e presente em instituições como Harvard e Universidade de Coimbra. Autor de artigos publicados em espaços como ABDConst, Future Law e revistas jurídicas nacionais, atua como palestrante em instituições como UERJ, UFRJ, UFF, OAB/RJ e MPRJ. Dedica-se à pesquisa e defesa dos direitos das pessoas com deficiência, com experiência em inclusão, políticas públicas e ESG.
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Fonte https://diariopcd.com.br/violencia-contra-criancas-em-creches-desafios-responsabilidades-e-o-olhar-social-sobre-a-primeira-infancia/
Postado Pôr Antônio Brito



